Uma responsabilidade coletiva
No momento em que a sociedade enfrenta rupturas e turbulências sem precedentes, e que o dinheiro público é usado para apoiar a solvência e a liquidez dos negócios, a conduta e as obrigações empresariais enfrentam avaliações cada vez mais minuciosas.
Novembro | 2020O processo de relatórios corporativos precisa permitir aos diferentes stakeholders identificar empresas com boa gestão e que atuam para o interesse público. Relatórios e mecanismos de governança robustos são princípios fundamentais de interesse público e de construção de confiança.
É preciso haver transparência com relação ao modelo de negócios e aos riscos corporativos, bem como a respeito da governança e dos controles em vigor, além de uma narrativa equilibrada sobre desempenho sustentável. Segundo Sir Donald Brydon, proeminente empresário inglês, no final das contas, os stakeholders querem saber: “a empresa está sendo administrada honestamente e é provável que ela tenha um futuro?”
Para conseguir isso, todos os elementos do ecossistema do mercado precisam trabalhar para o interesse público – a empresa, os órgãos reguladores e o auditor independente.
Do ponto de vista da empresa, essas necessidades requerem gestão, equipes executivas e funções de compliance; canais independentes de governança, incluindo supervisão do conselho e funções de auditoria interna; e o engajamento ativo dos sócios e outros stakeholders do negócio.
Todas as partes do ecossistema trabalhando para a sociedade
A forte regulamentação – das organizações, dos mercados de capitais, dos auditores independentes e dos responsáveis pela definição de padrões relevantes – é outro componente crítico de um ambiente robusto de relatórios corporativos. A regulamentação coordenada e proporcional – promovida por reguladores de mercados de capitais e de firmas de auditoria, e que reflita as melhores práticas de diferentes localidades – é essencial nos mercados globais de hoje. Neste momento, há uma fragmentação em todo o cenário regulatório mundial e, se quisermos atingir esse objetivo, todo o sistema precisará se empenhar para obter maior consistência.
Além disso, o estabelecimento de novas normas precisa ser feito junto com os requisitos legais locais para gerar clareza e transparência, de modo que o relatório corporativo resultante seja significativo para todos os stakeholders.
No mundo todo, o ecossistema em torno dos relatórios financeiros está sendo analisado ativamente, incluindo a função e o propósito da auditoria. Os desafios que surgiram a partir dessas análises foram ampliados pelo cenário da Covid-19. A função de interesse público do auditor está sob crescente avaliação.
O auditor independente é uma peça importante desse ecossistema. No entanto, em algumas partes do mundo, há exemplos em que a auditoria parece não atender às expectativas do público – colocando em questão o papel e o valor da auditoria.
Considerações do lado da oferta
- A auditoria é valiosa e não está quebrada
Na maioria dos casos, o rigor da auditoria independente impulsiona uma forte disciplina corporativa em empresas bem administradas e, geralmente, propõe recomendações que levam as empresas a fazerem ajustes nos relatórios corporativos. Esses ajustes garantem a conformidade com os padrões de relatórios financeiros e costumam ser adotados pelo conselho.
- Os elementos valiosos do processo de auditoria podem ser mais transparentes aos stakeholders
Como auditores, temos a responsabilidade de trazer transparência ao trabalho que realizamos e à forma como o executamos. Precisamos achar uma maneira de demonstrar melhor que adotamos uma mentalidade robusta e independente, que não hesitamos em questionar ou desafiar a alta administração. Precisamos garantir que nosso compromisso com a qualidade seja mantido de modo consistente e que aprendemos rapidamente com eventuais erros.
- Contudo, em alguns momentos, a auditoria ficou aquém – tanto com relação à qualidade da entrega quanto às expectativas do público
É preciso acolher um debate maior sobre a qualidade e a relevância da auditoria, principalmente em áreas como sustentabilidade e fraude, adotando uma visão mais voltada ao futuro do que histórica e retrospectiva. Reconhecemos as percepções de conflitos de interesse ou da aparente atenção inadequada dada a importantes áreas de risco comercial. Em alguns mercados, como Holanda, Austrália e Reino Unido, as discussões atuais procuram abordar uma série dessas preocupações.
No entanto, a reforma do lado da oferta pelos auditores não é a única solução.
Considerações na perspectiva do mercado
Os desenvolvimentos no âmbito do mercado, incluindo uma regulamentação robusta sobre as responsabilidades da direção para com o ambiente de controle interno e a supervisão regulamentar de relatórios corporativos, devem acompanhar quaisquer mudanças no processo e no produto da auditoria.
É fundamental que as empresas e os seus conselhos sejam transparentes e responsáveis por seus negócios e que exista um forte ambiente regulatório apropriado para impulsionar comportamentos responsáveis de interesse público. No Reino Unido, as recomendações das análises de Kingman e Brydon são detalhadas e bem pensadas nesse sentido. Já nos Estados Unidos, a adoção da Lei Sarbanes-Oxley se provou benéfica para impulsionar as responsabilidades da gestão da empresa e dos diretores, com relatórios de controles internos ao invés de relatórios financeiros, além de outros elementos do ecossistema de relatórios financeiros.
Investidores e outros stakeholders também têm um papel crítico a desempenhar para endereçar esses desafios e impulsionar mudanças.
Conclusão
A profissão contábil, o ambiente de negócios, os reguladores e os investidores precisam trabalhar juntos para impulsionar mudanças em todo o ecossistema de relatórios corporativos e responder às transformações no relacionamento entre as empresas e a sociedade em que trabalham.
Nenhuma reforma poderá – e nem deve – eliminar fracassos corporativos. No entanto, é necessário abordar as fraquezas e as preocupações cada vez mais visíveis que existem nos ecossistemas financeiros, atuando como um catalisador para um comportamento empresarial responsável e relatórios corporativos mais significativos.
Os relatórios corporativos devem evoluir para atender a necessidades sociais complexas, refletindo questões não financeiras e financeiras, e fornecendo maior clareza tanto sobre o modelo de negócios quanto a respeito dos riscos e retornos que a empresa está assumindo para executar esse modelo.
Precisamos estar preparados para desafiar o sistema de relatórios corporativos como um todo –incluindo o papel da auditoria – para restaurar a confiança e garantir que os mercados de capitais atuem comprovadamente para o interesse público.
A Deloitte está comprometida com essa evolução dos relatórios corporativos para o interesse público e irá explorar seus elementos em diversos pontos de vista para estimular e fortalecer o debate.
Jean-Marc Mickeler é líder global da área de Audit & Assurance da Deloitte. Ele começou sua carreira na Deloitte em 1994, supervisionando a auditoria de diversos bancos internacionais. Jean-Marc é Mestre em Administração pela Amiens Business School, Revisor Oficial de Contas registado e auditor registrado da ACPR – autoridade prudencial francesa. Atua também como presidente da Comissão de Controle de Clubes Profissionais da DNCG (Liga de Futebol Profissional da França) desde 2017.