Parcerias para o futuro
Para sobreviver no complexo ambiente de negócios do século 21, empresas se unem a startups, centros de pesquisa – e até concorrentes – para criar ecossistemas que têm um objetivo principal: inovar e manter sua relevância no mercado.
Junho-Agosto | 2019Até pouco tempo, a inovação era vista como uma atividade solitária, que dependia de ideias de gênios como Henry Ford, Sakichi Toyoda e Steve Jobs, para citar alguns. Mais atrás, os grandes inventos e descobertas também eram resultado do trabalho intelectual de um homem só – como Leonardo da Vinci e Arquimedes de Siracusa (suposto autor da interjeição “eureka”, usada até hoje quando alguém tem uma boa ideia).
No século 21, essa figura genial não chegou a se tornar irrelevante (algo que dificilmente acontecerá), mas perdeu importância. Na economia com base em tecnologias digitais e convergência de empresas de setores diferentes, isolar um gênio em um laboratório deixou de fazer sentido. Cada vez mais, inovar é uma atividade que envolve não apenas várias pessoas – mas diversos grupos, representando diferentes instituições. São os chamados “ecossistemas de inovação”.
“Ecossistema de inovação é um conjunto de entidades que colaboram entre si para inovar na produção de bens ou de serviços”, diz Jefferson Denti, sócio da área de Consultoria Empresarial e líder da prática Digital da Deloitte. Os ecossistemas podem ser formados por grandes e pequenas empresas, universidades, startups ou ainda órgãos públicos e centros de pesquisa. O importante aqui é o entendimento de que é muito difícil uma empresa inovar sozinha, pois os produtos e serviços ficaram mais complexos. No cenário atual, é mais fácil encontrar soluções inovadoras a partir da união de capacidades distintas.
“Entrar em um ecossistema amplia os horizontes, porque evita que as empresas fiquem presas a uma mesma visão”, diz Eduardo Kfouri, vice-presidente para América Latina da desenvolvedora de softwares Qlik. “Ao fazer parcerias, você traz perspectivas, demandas e necessidades diferentes e isso possibilita um ambiente colaborativo que resulta em uma inovação em um nível superior.” A Qlik lidera uma comunidade digital com mais de 100 mil pessoas, incluindo clientes, funcionários e especialistas em análise de dados. “A maioria dos participantes está diretamente envolvida com nossas plataformas e acaba trazendo ideias e soluções que, se forem propícias, são incorporadas pela nossa equipe de pesquisa e desenvolvimento”, explica Kfouri.
A economia digital está criando novos paradigmas e isso, por si só, obriga as empresas a inovar – e inovar de uma forma muito mais rápida, Jefferson Denti, sócio da área de Consultoria Empresarial e líder da prática Digital da Deloitte.
Juntar-se a um grupo do qual pode fazer parte até um antigo concorrente é a resposta para um mundo em transformação, onde o ambiente de negócios é impactado pela quebra de barreiras entre diversos setores – por exemplo, uma montadora de veículos autônomos é uma indústria manufatureira ou de tecnologia? –, pela mudança nos hábitos dos consumidores e pelo rápido desenvolvimento de tecnologias digitais, como Internet das Coisas (IoT), impressão em 3D, inteligência artificial, nanotecnologia e aprendizado de máquina (machine learning). Segundo Denti, não é mais concebível que uma empresa fique anos pensando em um projeto para inovar. “É preciso ir para a inovação aberta, fazendo com que terceiros participem do processo.”
Os ecossistemas de inovação são resultado de um processo que remonta ao século 19. Especialistas apontam o embrião para os anos 1850, quando o economista alemão George List defendeu que a Alemanha estabelecesse um sistema nacional para se desenvolver e fazer frente à Grã-Bretanha. A ideia era construir uma base fabril nacional e proteger as indústrias nascentes estratégicas da concorrência estrangeira, até o ponto de serem capazes de competir internacionalmente. Na virada para o século 20, o economista Alfred Marshall criou o termo “aglomeração” para definir um ambiente em que as empresas se instalam numa mesma área. Em 1990, Michael Porter lançou o conceito de “clusters” para o desenvolvimento econômico de indústrias, regiões e países. Finalmente, em 1993, James Moore criou o conceito de “ecossistema de negócios”, que, no século 21, evoluiu para o ecossistema de inovação. “A base de toda essa questão é a tendência de digitalização, que permitiu a coleta e análise de uma imensa quantidade de dados”, diz Renata Muramoto, sócia da prática de Estratégia e Operações da Deloitte. “A troca de informações proporciona benefícios e abre oportunidades para todos.”
No começo do ano, a Huawei, multinacional chinesa especializada em equipamentos para redes e telecomunicações, lançou o Global Industry Vision 2025. De acordo com o estudo, em 2025, todas as coisas vão ter a capacidade de “sentir”, ou seja, terão sensores que as conectarão aos outros dispositivos. A confirmação desse cenário criará um mundo onde tudo é interligado e inteligente. Em sete anos, o número de smart devices chegará a 40 bilhões, com cerca de 100 bilhões de conexões. Isso dará base a uma economia digital de US$ 23 trilhões – maior do que o PIB dos Estados Unidos, hoje na casa dos US$ 20 trilhões. “Esse ambiente cria novos mercados e ecossistemas. Inovar será essencial para as empresas manterem a relevância”, afirma Juelinton Silveira, diretor de Comunicação e Negócios com o Governo da Huawei no Brasil. Afinal, se todas as coisas estarão interconectadas, por que as empresas deveriam se isolar para inovar?
Há inclusive empresas que nascem a partir de um ecossistema. Um exemplo é a Alelo, criada em 2003 por meio da conjunção de dois bancos concorrentes, o Banco do Brasil e o Bradesco, para atuar no mercado de pagamentos e benefícios aos trabalhadores. Há um ano, a área de Inovação da Alelo está alocada no Inovabra, um habitat de co-inovação que reúne empresas, startups, investidores e empreendedores focados em gerar novos negócios e soluções arrojadas – tendo como base o networking e a colaboração. “Atuar em ecossistemas é um caminho sem volta”, diz Márcio Alencar, diretor de Negócios com Estabelecimentos Comerciais e Inovação da Alelo. A equipe de inovação, formada por três profissionais, passa quatro dias da semana no Inovabra – e um dia na sede da Alelo, para reuniões. “Já não é mais possível estarmos antenados ao que acontece lá fora se ficarmos restritos aos nossos ambientes corporativos”, diz Alencar.
Um dos resultados desse ambiente colaborativo foi o Alelo Pay, que permite o pagamento de refeições pela leitura de QR code por meio de um smartphone. O serviço ainda está em fase de testes e foi criado pensando em um público de 6 milhões de pessoas que não têm aparelhos com tecnologia de pagamento por aproximação. O projeto foi feito em parceria com startups e com a fabricante de software TOTVs.
No setor de telecomunicações, as empresas criam parcerias para agregar uma expertise que, até recentemente, não era considerada importante, como os serviços digitais. No século passado, as telecoms eram focadas em criar infraestrutura para transmissão de voz. Depois, passaram a transmitir dados. Hoje, precisam agregar valor, produzindo conteúdo e desenvolvendo outros serviços. “As empresas lidam com o desafio de oferecer serviços digitais que exige um DNA, uma experiência e cultura distinta do que existia tradicionalmente”, explica João Moura, presidente da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (TelComp). “Por isso, temos casos de operadoras que criaram ecossistemas que reúnem áreas distintas, como tecnologia, marketing e atendimento ao cliente para desenvolver novos produtos.”
Como montar o seu ecossistema
O primeiro passo para quem pensa em criar um ecossistema é estruturar um programa interno de inovação. Não se trata de uma contradição. Antes de olhar para fora, é preciso arrumar a casa. “Não basta montar um departamento de pesquisa e desenvolvimento”, diz Denti, da Deloitte. “Trata-se de criar uma mentalidade centrada no valor e na experiência a ser entregue ao cliente ou consumidor.” A partir daí, é preciso estabelecer um ciclo para medir o resultado em três eixos: (1) geração de ideias; (2) aceitação por parte do consumidor ou cliente; (3) desempenho do ponto de vista de resultados financeiros. “Muitas vezes, há uma cobrança imediata pelo retorno financeiro de um novo produto ou serviço. Mas é preciso ter um horizonte mais amplo nesses casos. Esse é um erro que pode matar boas ideias”, completa o sócio da Deloitte.
O programa de inovação interno não pode, de forma alguma, ser um limitador às parcerias ou disrupturas. Um risco comum é o corporativismo se sobrepor a alguma nova solução que possa competir com a própria empresa. Foi o caso da Kodak, que desenvolveu a tecnologia de câmeras digitais, mas preferiu continuar com o foco no analógico, perdendo um mercado bilionário para a concorrência. “A inovação não pode ser aniquilada pelo status quo da organização”, diz Denti. “A liderança deve ser assertiva e tomar as medidas necessárias para impedir que isso aconteça.”
A implantação de uma cultura moderna, que valorize o trabalho em equipes e a colaboração fora de casa facilita bastante esse processo. “Sem dúvida, não é trivial mudar o método de desenvolvimento de uma empresa, já que pode haver dificuldade em olhar para fora e entender que parceiros aceleram o processo de inovação”, diz Alencar, da Alelo. “As pessoas precisam estar engajadas e entender que o cenário colaborativo não é apenas uma frase bonita; é um conceito que deve ser colocado em prática.”
Um obstáculo frequente é a falta de confiança entre os atores de um ecossistema. “É preciso vencer os pontos que possam gerar insegurança, como a confiabilidade de dados e a segurança da informação, para não haver fragilidades no processo”, diz Renata Muramoto, da Deloitte.
É preciso vencer os pontos que possam gerar insegurança para não haver fragilidades no processo, Renata Muramoto, sócia da prática de Estratégia e Operações da Deloitte.
Outro fator determinante é a estrutura e os arquétipos do ecossistema, que variam conforme o grau de participação e a responsabilidade dos envolvidos. Jefferson Denti, da Deloitte, destaca dois: o orquestrado e o de cadeias colaborativas. O primeiro é caracterizado por ser comandado por um “maestro”, geralmente uma empresa grande que lidera o processo e coordena as demais na entrega do resultado. Já nas cadeias colaborativas, não há uma liderança. Todos atuam de forma proporcional. Nos dois casos, é importante que uma característica permaneça: a interdependência entre os participantes.
A consolidação desse modo de inovar deve levar as companhias – e a reboque, a sociedade – a ver a criação de produtos e serviços que hoje nem imaginamos. Basta vislumbrar o que poderia acontecer se os grandes gênios da humanidade dividissem o mesmo ambiente com o único intuito de inovar.