O papel central do hidrogênio limpo na transição energética
Para Geoff Tuff, diretor e líder de Sustentabilidade, Clima e Equidade para clientes nos setores de energia, recursos naturais e manufatura da Deloitte Estados Unidos, é impossível alcançar a descarbonização que aspiramos como sociedade sem hidrogênio na mistura.
Dezembro | 2023Um dos elementos químicos mais abundantes da terra, o hidrogênio será fundamental para que os países consigam diminuir suas emissões de carbono e, assim, atingir as metas do Acordo de Paris. Essa é a opinião de Geoff Tuff, diretor e líder de Hidrogênio e de Sustentabilidade, Clima e Equidade para clientes nos setores de energia, recursos naturais e manufatura da Deloitte Estados Unidos. Geoff esteve em São Paulo, em novembro de 2023, para participar do evento HSM+, onde ministrou a Masterclass “Visão para o futuro do hidrogênio verde”.
Em sua passagem pelo Brasil, Geoff conversou com a revista Mundo Corporativo sobre hidrogênio verde e limpo, seu potencial na transição para fontes de energias mais sustentáveis, a importância de parcerias público-privadas para alavancar sua produção e mais. Confira a entrevista abaixo.
MC: Podemos começar falando sobre o conceito de “hidrogênio verde”? “Hidrogênio verde” e “hidrogênio limpo” são a mesma coisa?
Não são a mesma coisa, e, na verdade, a tendência é deixarmos de usar cores para categorizar o hidrogênio. Basicamente, todo hidrogênio verde é limpo, mas nem todo hidrogênio limpo é verde.
O hidrogênio é produzido há décadas e é um elemento muito importante no universo, usado em diferentes processos industriais. O problema é que se trata de uma substância muito “suja”, ou seja, tem uma pegada de carbono muito alta.
Durante a maior parte da história do hidrogênio limpo, adotou-se um espectro de cores para categorizar as diferentes maneiras de produção. Há um debate sobre isso acontecendo agora em todo o mundo, mas existem diversos tipos de hidrogênio limpo. O verde significa que o hidrogênio é produzido por meio da eletrólise da água, utilizando energia 100% renovável. Já o hidrogênio rosa usa a eletricidade produzida por uma energia nuclear para fazer essa eletrólise e também é considerado limpo (ou de baixo carbono). Por outro lado, existe uma controvérsia em relação ao hidrogênio azul, produzido por meio de métodos tradicionais, tendo o gás natural como fonte de energia. Neste caso, o carbono gerado é capturado e armazenado. Por isso, enquanto muitos argumentam que, apesar da alta emissão de carbono, o hidrogênio azul pode ser considerado limpo, aqueles que querem pressionar pela descarbonização do nosso sistema industrial alegam que, por requerer muita energia, que normalmente provém de fontes fósseis, ele só intensifica o impacto negativo da utilização desse tipo de combustível.
MC: Quais são as vantagens e desvantagens do hidrogênio verde em comparação a outras fontes de energia?
Existe o que chamamos de indústrias “hard-to-abate” (ou difícil de reduzir, em uma tradução literal), que são aquelas muito difíceis de descarbonizar, pois não se adaptam bem ao uso de eletricidade. Incluem-se nessa categoria aço, cimento e petroquímicas. Muitos consideram que a chave para a descarbonização é eletrificar tudo, mas isso não é possível com essas indústrias. O processo de fabricação do aço requer muito calor e não é possível obter um nível suficiente alto para realmente derreter o minério de ferro, por exemplo, com eletricidade.
É possível pensar na diferença entre eles como elétrons e moléculas. A eletricidade é como os elétrons; muito úteis para energizar casas e baterias para veículos elétricos, por exemplo. No entanto, as moléculas têm um perfil de energia diferente: podem ser queimadas em um calor muito mais intenso, são transportadas de maneiras diferentes. Tradicionalmente, pensamos no petróleo e no gás natural como moléculas, mas o hidrogênio também é uma molécula, e pode ser usado em processos semelhantes às fontes de energia tradicionais.
A descarbonização dos setores difíceis de reduzir pode ser possibilitada por meio do hidrogênio verde. Na verdade, a primeira aplicação de hidrogênio limpo será nos processos em que o hidrogênio cinza (ou sujo) é usado hoje. Ou seja, só o fato de produzirmos hidrogênio limpo para colocarmos no desenvolvimento de fertilizantes ou em processos químicos em que o hidrogênio é usado hoje já descarbonizará instantaneamente esses setores.
Pensando em usos industriais de alto calor, como a fabricação de aço ou cimento, acredito que seria extremamente útil. Provavelmente, precisaremos de uma série de outros processos industriais que exigem moléculas para que o calor funcione. Outro setor que pode ser beneficiado pelo uso do hidrogênio limpo é o de transporte pesado: marítimo, aéreo e rodoviário.
MC: Qual o potencial do hidrogênio verde (econômico e social), a sua importância no contexto da transição para fontes de energia mais sustentáveis e o seu papel nos caminhos para a descarbonização?
Muito tem se falado sobre as metas do Acordo de Paris, e sobre a impossibilidade de alcançá-las. Independentemente disso, não podemos chegar ao nível de descarbonização que aspiramos como sociedade sem hidrogênio na mistura. Podemos debater sobre onde exatamente ele deve ser aplicado e onde estamos – e não estamos – prontos para isso, mas, se não tivermos hidrogênio limpo, não alcançaremos nossos objetivos. Essa é a maneira mais simples de pensar sobre isso.
Sobre impacto social, posso começar pela necessidade de construção de uma nova e significativa infraestrutura para produzir e armazenar hidrogênio limpo. Não é possível simplesmente modernizar as usinas de hidrogênio existentes, é preciso construir novas instalações e plantas. Do ponto de vista econômico, essa é uma oportunidade de investimento massivo tanto para o setor público – para que os governos possam estimular a economia – quanto para o setor privado. Estamos vendo uma dinâmica muito interessante com alguns desses incentivos nos Estados Unidos. Na verdade, sempre que houver muito dinheiro fluindo, haverá uma boa oportunidade econômica.
E sob uma perspectiva social, embora haja muitos debates sobre o impacto desses projetos de infraestrutura nas comunidades locais, há muito a ser feito para garantir que essas comunidades possam se beneficiar de todo esse fluxo econômico. Precisamos ter certeza de que esses fluxos econômicos cheguem a essas pessoas e isso não é simples de fazer. É fundamental tentarmos acertar para atingir uma equidade para todos por meio da transição energética. Caso contrário, perderemos uma enorme oportunidade de realmente fazer o bem no mundo.
MC: Quais são os motores e as forças macroeconômicas que estão moldando o desenvolvimento da economia do hidrogênio? As parcerias público-privadas podem acelerar esse desenvolvimento?
Devido ao seu importante papel na transição energética, do ponto de vista macroeconômico, não consigo pensar em muitas partes do mundo que não estejam interessadas de alguma forma no hidrogênio – seja produzindo para uso próprio ou para exportação, seja importando de países produtores.
O que vai definir quem será exportador e quem será importador é a combinação de acesso à energia renovável e políticas públicas. Por exemplo, se você olhar para o sudeste da Ásia e o Japão, lugares em que já existem políticas que apontam que o hidrogênio limpo é uma parte crítica de seu futuro energético mas que não têm capacidade suficiente de produzi-lo em escala, eles já começaram a fechar alguns acordos importantes com a Austrália.
O problema agora é que não temos a infraestrutura de transporte para movimentá-lo muito bem e, portanto, a crença predominante é de que, nos estágios iniciais da produção de hidrogênio limpo, isso acontecerá em pequenas regiões em que houver parcerias público-privada.
Não podemos fazer com que o hidrogênio limpo funcione no curto prazo sem intervenção política. E há maneiras diferentes disso acontecer, seja fornecendo subsídios para investimentos, incentivos fiscais – mesmo que seja para começar uma economia de hidrogênio em uma escala muito pequena, demonstrar que funciona, incentivar outros a investir na produção ou a comprar o hidrogênio quando ele for produzido. É preciso permitir que o aumento dessa escala aconteça para então investir na criação de toda a infraestrutura de transporte para começar a movê-lo. No entanto, ninguém vai investir em toda essa infraestrutura e colocar todos esses planos em funcionamento sem alguns casos de sucesso.
Alguém tem que começar e não há como fazer isso sem o envolvimento dos setores público e privado. Isso é parte do que estamos vendo nos Estados Unidos hoje: temos alguns incentivos políticos, mas o departamento de energia está se concentrando em hubs, em pequenas regiões de produção de hidrogênio, sendo este o primeiro passo para se chegar a uma escala relevante.
MC: Você acredita que o setor financeiro pode desempenhar um papel fundamental na transição energética?
Acredito que pode, mas não acredito que irá. O problema com todo o sistema – e isso tem sido o tema principal das minhas palestras e livros – é que, se quisermos ter sucesso, temos que mudar os modelos de negócios atuais. A questão com o hidrogênio hoje é que ninguém quer ser o primeiro a se movimentar porque pode não ser economicamente vantajoso. Fornecedores não querem investir na produção até terem certeza de que têm demanda assinada para comprar o hidrogênio e os compradores não querem se comprometer a menos que possam ter certeza de que será competitivo em termos de custos em relação ao gás natural.
É quase como a questão do ovo e da galinha: não há acordos de compra escalonada em vigor hoje e, portanto, os investidores de energia olham para isso e dizem “ok, vamos investir em hidrogênio, mas apenas quando ele chegar a um ponto em que comece a decolar”. Essa, aliás, é uma das razões pelas quais é tão importante ter intervenção de políticas públicas.
Temos que explorar diferentes maneiras de fazer negócios, de gerenciar o risco, de estabelecer contratos, de pensar em pagar pelo hidrogênio. E há uma variedade de modelos de negócios diferentes que existem para isso, se formos capazes de dar os primeiros passos. Na verdade, acabei de publicar um artigo sobre 13 modelos de negócios que podem ser primeiros passos interessantes para fazer isso.
MC: Como o senhor vê o Brasil nesse contexto? Qual é o tamanho do nosso potencial de desenvolvimento neste setor? Que recomendações o senhor tem para os setores público e privado na definição de estratégias de apoio ao hidrogênio verde no Brasil?
O que eu sei sobre o Brasil é que vocês são ricos em recursos naturais, mas que nada disso adianta se não houver esforços políticos. Ninguém está muito à frente neste jogo ainda. Mesmo com todos os incentivos atuais existentes nos Estados Unidos, investindo bilhões de dólares diretamente no hidrogênio, não vemos a economia decolar. Portanto, haverá um papel para quem acertar no modelo de negócio.
A Deloitte sugere que o Brasil estará entre os exportadores e será bem-sucedido em desempenhar esse papel, mas o País tem de lidar com as mesmas questões que os outros: colocar projetos de pequena escala em funcionamento rapidamente, ter certeza de que está usando – e estar preparado para os possíveis debates sobre se essa energia não deveria ser utilizada com outras finalidades. Além de tudo isso, não pode esquecer de endereçar todas as questões que envolvem a equidade energética.
A boa notícia é que isso não deve ser algo do tipo “o vencedor leva tudo”. Temos que produzir hidrogênio e evitar ter um produtor dominante exportando para todo o resto do mundo.
MC: Que países são mais desenvolvidos e que lições podemos retirar?
Eu diria que os Países Baixos, embora comparado com o número de anúncios, o número de projetos realmente implantados seja muito pequeno devido à dificuldade de chegar a essa decisão final de investimento. O FID (Final Investment Decision, na sigla em inglês) é um dos maiores desafios que a indústria enfrenta hoje.
A Arábia Saudita está sendo muito agressiva; ela não tem necessariamente a produção em funcionamento ainda, mas pretende produzir hidrogênio limpo. Em termos de uma economia de escala já em vigor, temos bolsões de atividades em vários lugares, como alguns projetos interessantes acontecendo nos Estados Unidos e na Austrália.
No entanto, como eu disse antes, ninguém está muito à frente dessa corrida e não deve haver um único vencedor em tudo isso. Ainda estamos nos estágios iniciais.