Identidade móvel
O mundo digital, móvel e conectado transformou o setor de telecomunicações, seus processos e o desenho de seu futuro. Após os impactos da crise econômica, a busca por uma nova identidade para o segmento continua em 2017.
Outubro-Dezembro | 2016
A tão decantada transformação digital impactou de forma irreversível diferentes setores da economia mundial. A mudança, dizem, é tão grandiosa quanto foram as primeiras fases da Revolução Industrial. No ambiente tecnológico, a transformação aconteceu de maneira rápida e intensa, quebrou paradigmas e criou uma avalanche de questões, que, se resolvidas, irão confirmar ou ditar as tendências do setor e da sociedade. Diante da revisão premente de modelos e valores, o mercado de telecomunicações busca uma identidade alinhada a um mundo em transformação – um processo que tende a se intensificar já no curto prazo. Tudo isso em meio, ainda, aos reflexos da situação econômica turbulenta que atingiu o País recentemente.
Além desses desafios disruptivos, as concessionárias de telecomunicações ainda carregam nos ombros pesos, obrigações e penalidades que afetam a capacidade de investimentos, consequência gerada em grande parte, segundo elas, pela Lei Geral das Telecomunicações (LGT), de 1997, que precisa ser revista para que seja alinhada às reais necessidades dos agentes do setor.
De acordo com as estimativas de André Borges, secretário do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o Projeto de Lei (PL) para a revisão da LGT deve sair ainda em 2016 ou até meados de 2017. Luiz Alexandre Garcia, CEO da Algar e também um dos conselheiros do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil), ressalta que “a LGT tem 20 anos e a sua revisão irá contribuir muito para o desenvolvimento das telecomunicações e a confiança do investidor. Precisamos de uma lei que traga estabilidade regulatória, considerando que os investimentos no setor são de longo prazo”.
Juarez Quadros, presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), destaca entre as preocupações a necessidade de o órgão voltar a ser autônomo e orientado por seu Conselho. “A Anatel não tem tido a força necessária para regular o setor”, disse em seu discurso de posse em outubro de 2016. No mesmo mês, no evento de telecomunicações Futurecom, em São Paulo, alertou que o ecossistema do setor cresceu mais do que a Agência e que ela não pode se deixar atropelar pela inovação. “As obrigações da Anatel estão seladas nos artigos 18 e 19 da Lei Geral das Telecomunicações e elas deixaram de ser respeitadas nos últimos 14 anos. Temos de fazê-las cumprir.”
Impactos econômicos
Nesse cenário em revisão, as dificuldades são agravadas pelas turbulências econômicas. Eduardo Levy, presidente do SindiTelebrasil, diz que o setor está passando pelo pior ano desde a privatização.
Segundo Levy, a razão está na junção de fatores liderada pela crise econômica, que trouxe várias consequências, como a alta da tributação sobre os serviços de telecomunicações para ampliar a arrecadação no setor público, o aumento estrondoso das taxas de juros de crédito ao consumidor e o recuo dos investimentos. “Tudo isso gerou uma retração consistente, uma das maiores perdas de poder de compra do consumidor desde 1930, que abalou a receita dos atores do mercado de telefonia e serviços de telecomunicações”, diz o presidente do SindiTelebrasil.
Stefano De Angelis, CEO da TIM, reconhece que 2016 foi um ano difícil para a operadora. “Tivemos sim problemas com a qualidade da nossa rede e queremos recuperar nossa posição e evoluir para uma operadora de qualidade, capaz de competir com sucesso também no mercado de alto valor. Nossa meta é ser líder como operadora móvel de ultrabanda larga”, disse.
Do consumidor em mutação às OTTs
O cenário recessivo local é pano de fundo em um panorama disruptivo, com todas as transformações impulsionadas pela adesão a recursos tecnológicos que esculpiram um novo perfil do consumidor. A edição de 2016 do estudo “Global Mobile Consumer Survey”, realizado pela Deloitte com 53 mil consumidores em 31 países, incluindo o Brasil, confirma a mudança de hábito do usuário de serviços de telecomunicação, mídia e tecnologia, hoje muito mais voltado para a comunicação por meio de mensagens instantâneas, em detrimento da realizada por voz (veja mais detalhes sobre o estudo no box a seguir).
Hoje, o mercado entende que o consumidor é o grande protagonista do ecossistema digital, decidindo e escolhendo os melhores produtos e serviços, antecipando suas expectativas. Estes ganharam força e voz por meio das redes sociais.
Para Solange Carvalho, diretora da Deloitte para a indústria de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia, a redução no uso do aparelho móvel para realizar chamadas de voz tradicionais é um fenômeno que vem sendo acompanhado de perto e que causa preocupação entre as operadoras de telefonia. “As teles têm se dedicado a repensar seus modelos de negócios para enfrentar as tendências e seguirem capitalizadas”, diz.
As teles têm se dedicado a repensar seus modelos de negócios para enfrentar as tendências e seguirem capitalizadas., Solange Carvalho, diretora da Deloitte para a indústria de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia.
Outro entrave para as teles são os chamados Over the Top (OTT), serviços que o usuário recebe via internet. Eles não possuem infraestrutura própria e “pegam carona” na rede construída e mantida pelas operadoras. Esta tem sido uma questão polêmica, visto que as operadoras, segundo elas, estão perdendo, faz tempo, receita com esses serviços. Exemplos que se enquadram nessa categoria são WhatsApp, Netflix, Telegram e YouTube.
A polêmica gira em torno do fato de que as OTTs desfrutariam de uma posição “privilegiada”, considerando que não estão sujeitas às mesmas regulamentações, desequilibrando o mercado, na avaliação das operadoras. Por outro lado, as OTTs dizem que as teles ganham no aumento do tráfego que proporcionam nas redes e na consequente ampliação da demanda por pacotes mais robustos com mais banda.
O impasse tem início na classificação das OTTs. Afinal, elas se enquadram como Serviço de Valor Adicionado (SVA) ou ou de telecomunicações? Twitter é um serviço de comunicação similar ao SMS e, portanto, teria de ser igualmente regulado? E-commerce com interação de VoIP entre fornecedor e cliente pode ser enquadrado como uma ligação telefônica? Estes são apenas alguns exemplos de uma crise de identidade estrutural a ser resolvida.
Eduardo Levy, do SindiTelebrasil, defende que essas assimetrias têm de ser corrigidas. Segundo ele, as OTTs não se encaixam na modalidade de SVA, de acordo com o artigo 61 da LGT. “Esse artigo diz que serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, ao armazenamento, à apresentação, à movimentação ou à recuperação de informações”, argumenta. Anatel e governo têm sido questionados sobre o tema, mas ainda não há definição, mas sim discussões em andamento.
O impacto das OTTs é confirmado no estudo da Deloitte sobre os hábitos dos usuários de celular deste ano. O uso de chamada de voz caiu quase 20 pontos percentuais entre 2013 e 2015. A pesquisa de 2016 registrou ainda que 47% dos respondentes usam seus smartphones para realizar chamadas de voz por meio do protocolo IP, que são oferecidas pelas OTTs – há três anos, não chegava a 16%. A penetração do WhatsApp impressiona.
Futuro em construção
Inclui novos entrantes, como a seguradora Porto Seguro, por meio da Porto Seguro Conecta, primeira operadora de telefonia móvel virtual a atuar no Brasil. Criada em 2013, a operadora oferece pacotes de celular e banda larga móvel para o consumidor final.
Diferentemente das OTTs, a operação recebe a regulamentação das operadoras virtuais, da Anatel. São as chamadas Mobile Virtual Network Operator (MVNO). Elas não possuem infraestrutura própria nem frequências. No caso da Porto Seguro Conecta, a rede alugada é da TIM. A grande vantagem do negócio é o uso da base de clientes da seguradora, que possui cerca de 8,5 milhões ativos. A meta é agressiva: totalizar 1 milhão de linhas até 2018. Hoje, já conta com mais de 430 mil acessos, sendo a maioria usuários da tecnologia M2M (machine to machine).
“Não vamos competir com as operadoras tradicionais. Nossa bandeira é oferecer um tratamento diferenciado aos clientes e conquistar aqueles que gostariam de tratamento VIP”, diz Tiago Galli, gerente‑geral da Porto Seguro Conecta. Entre os serviços, estão a entrega por motoboy do celular nas mãos do cliente que o esqueceu em algum lugar, o empréstimo pela operadora de um aparelho por até 30 dias, caso o cliente tenha sido roubado ou esteja com um aparelho danificado, e um seguro para o caso de roubo.
Conectividade em alta
Investimentos em banda larga, mobilidade e 5G a caminho. Para isso, porém, as redes precisam se tornar digitais e virtualizadas, com recursos que suportem, por exemplo, os 20 bilhões de dispositivos que estarão conectados nelas, de acordo com estimativas para 2020, por conta do impulso da Internet das Coisas (IoT).
De acordo com dados da Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), no Brasil, a banda larga móvel registrou 197,3 milhões de acessos (3G e 4G) em agosto de 2016, enquanto a banda larga fixa totalizou 26,3 milhões. As duas modalidades somaram 223,6 milhões de acessos naquele mês.
“No entanto, ainda somos um país analógico. Avançamos muito pouco”, lamenta-se Levy, do SindiTelebrasil. Para ele, o Brasil tem de crescer muito no modelo digital, em especial, na prestação de serviços ao cidadão. “O governo tem de ser, em um futuro bem próximo, o grande cliente das operadoras. Afinal, desde a privatização, as teles já investiram R$ 500 bilhões. Precisamos oferecer à sociedade e às empresas toda a transparência e as facilidades que só a tecnologia digital pode proporcionar”, sugere.
A IoT é uma outra grande aposta e também depende dos rumos do setor. Uma das iniciativas recentes nessa área foi a criação da Associação Brasileira de Internet das Coisas (ABINC), dedicada a construir uma rede de IoT colaborativa. “É uma rede física para transmissão de dados, em que cada integrante investe em seus equipamentos. Queremos nos unir para derrubar os obstáculos da conectividade”, disse Flavio Maeda, presidente da ABINC, que revela estar criando um grupo de trabalho voltado à regulamentação com empresas como Microsoft, Cisco e CPqD.
Um dos protagonistas dessa evolução é José Gontijo, diretor do Departamento de Indústria, Ciência e Tecnologia do MCTIC. Gontijo conta que, em 2013, diante do desafio de aumentar a produtividade no País, o Ministério percebeu que isso só poderia ser feito por meio da tecnologia e tomou a decisão de criar, em 2014, a Câmara de Internet das Coisas.
Agora chegou o momento de acelerar o Plano Nacional de IoT. “No Plano, vamos tratar do assunto em consulta pública, abordar tributação e tecnologia, e tudo isso não somente via operadoras de telecomunicações, mas também por meio da iniciativa privada”, disse Gontijo, acrescentando que um dos maiores desafios é a interoperabilidade dos sistemas em IoT, seguida da capacitação profissional. “Minha visão de IoT é como um app de celular. Simples, imediato. Uma tecnologia mais flexível e capaz de gerar grandes modelos de negócios.”
Entre as ações reveladas pelo executivo estão a instauração do Plano Nacional de IoT em órgãos de governos (Federal, Estadual e Municipal) e a adoção de soluções de IoT, que irão impactar a eficiência da gestão e da prestação de serviços públicos, além dos esforços para instituir o conhecimento em eletrônica e robótica no ensino básico.
Nesse grande fórum de debates e de contribuições, tudo caminha para um setor renovado, mais alinhado e digital. Nos próximos cinco ou seis anos, provavelmente “tudo” e todos estarão conectados. E essa evolução passa por mais discussões, colaborações e padronizações tecnológicas e, em especial, pela revisão da LGT no Brasil. Somente dessa forma o setor poderá planejar e direcionar com assertividade os investimentos para continuar sendo competitivo e se tornar mais atraente aos investimentos globais.