Competências do futuro no presente
Mudanças nos processos de produção e gestão, atreladas às novas tecnologias, aceleram a adoção das habilidades que forjarão o perfil dos profissionais do amanhã.
Janeiro-Março | 2018O desenho animado dos Jetsons, um dos grandes sucessos do estúdio Hanna-Barbera nos anos 1960, foi bastante feliz em algumas de suas projeções futuristas. Entre elas, por exemplo, os módulos de carros voadores, cujos protótipos já são realidade, e a execução de tarefas por robôs – no caso, a máquina é Rose, a empregada doméstica da família.
No entanto, os roteiristas da animação erraram feio ao predizer a relação de George Jetson com seu chefe, o temperamental sr. Spacely. Autoritário, o homem vive ameaçando demitir o pai da família e, vez ou outra, lhe acena com uma promoção que o leve a patamares mais elevados na organização – tudo de maneira muito arcaica. Se levarmos em conta os movimentos atuais nas relações de trabalho, pode-se dizer que essa faceta do desenho dos Jetsons está mais para Flinstones.
Uma série de mudanças relacionadas aos processos de produção e de gestão no meio corporativo e à velocidade com que novas tecnologias são incorporadas pelas empresas tem provocado também alterações nas competências requeridas dos profissionais e no modo como suas carreiras se desenvolvem.
Desse modo, só sobrevivem, ou, mais que isso, crescem nesse novo cenário de concorrência de mercado as organizações e os indivíduos devidamente preparados para “pegar as ondas” da transformação.
Os avanços tecnológicos exercem papel fundamental nesses movimentos da maré. Com eles, determinadas tarefas são automatizadas, passando a ser realizadas por dispositivos robóticos. Funções e cargos, assim, precisam ser reinventados de acordo com a demanda por novas habilidades.
O resgate do humano
Artigo publicado na edição 21 da “Deloitte Insights” de autoria de John Hagel, Jeff Schwartz e Josh Bersin, chama a atenção para essa questão. O texto enfatiza que a tecnologia tem forçado as organizações a redesenhar a maioria dos empregos, de forma a alavancar habilidades humanas únicas: empatia, inteligência social e emocional, capacidade de enxergar o contexto em que as situações se inserem e identificar rapidamente os problemas enfrentados pelos negócios.
Tomemos um exemplo, mencionado por Roberta Yoshida, sócia da Deloitte que lidera a prática de Consultoria em Gestão do Capital Humano. As atribuições de profissionais que eram responsáveis por inserir informações em um banco de dados precisam que seus papéis sejam reinventados. A digitação de informações tem sido automatizada; do olhar humano, passam a ser responsabilidades a análise, melhoria de processos e a aprovação dos referidos dados.
As qualificações necessárias para essa transição de perfil envolvem lideranças e gestores de recursos humanos. Um dos principais pontos a que devem estar atentos é a importância da qualificação contínua desses profissionais, o que envolve treinamento constante e um mapeamento sempre atualizado das competências desejadas.
Da mesma forma, o profissional precisa ter essa preocupação em relação ao desenvolvimento da própria carreira. E o entendimento de que também cabe a ele buscar oportunidades de alavancar o conhecimento para estar apto a desempenhar as novas funções que lhe são atribuídas. “Antes, a vida útil de um conhecimento adquirido chegava a 15 anos”, diz Roberta Yoshida. “Hoje, esse prazo se restringe a 3 ou 4 anos.”
Diz o artigo da “Deloitte Insights”: “Em vez de confiar em empregadores paternalistas para moldar a natureza e progressão de suas carreiras, os trabalhadores precisarão tomar a iniciativa de moldar suas próprias carreiras personalizadas. E, à medida que o trabalho evolui, os indivíduos devem cultivar a mentalidade de ‘surfar’, sempre alertas a habilidades emergentes e de alto valor para pegar a onda em um estágio inicial e capturar o maior valor dessas habilidades, filtrando as oportunidades de acordo com suas paixões pessoais”.
Profissional híbrido
Essas transformações exigem que esse trabalhador seja capaz de se movimentar por meio de diferentes áreas da organização. Assim, perfis mais estanques como o do profissional de finanças ou o de recursos humanos passam a dar lugar a uma descrição mais ampla de qualificação: cada vez mais as corporações necessitam de perfis híbridos, que transitem bem entre os diversos departamentos organizacionais e compreendam o negócio de uma maneira muito mais holística.
Esses novos parâmetros, inclusive, impactam a própria conceituação do desenvolvimento de carreira. “Ela passa a ser pensada em termos de portfólio de experiências, abrindo o leque do desenvolvimento e crescimento profissional para direções horizontais”, afirma Roberta Yoshida, da Deloitte.
O caminho de evolução do profissional não é mais necessariamente vertical, não passa obrigatoriamente por uma subida para níveis hierárquicos mais altos da companhia. Hierarquia, por sinal, é um conceito que perde força., Roberta Yoshida, sócia da Deloitte que lidera a prática de Consultoria em Gestão do Capital Humano.
É aí que falharam os roteiristas dos Jetsons. O modelo de promoções atreladas a nomenclaturas de cargos que, por sua vez, implicam salários maiores, tão em voga à época em que a animação de Hanna-Barbera foi criada, sucumbe às tendências de um futuro que, na realidade, já se desenha no presente das companhias mais antenadas com as modificações sociais e de mercado.
O perfil de profissional híbrido se aplica também a novos padrões de organização do próprio trabalho. Têm sido muito mais frequentes as contratações de mão de obra por projeto – as equipes se formam para dar conta de uma tarefa específica. Assim, quanto maior a amplitude de habilidades do profissional, mais facilmente ele pode se encaixar em diferentes empreitadas. Nesses grupos constituídos de acordo com uma finalidade específica, por sinal, as relações entre os integrantes também costumam ser bem mais horizontalizadas, eliminando a figura de um chefe autoritário.
O artigo da “Deloitte Insights” também reforça os novos tipos de relação entre empregadores e trabalhadores. Uma conjuntura em que a maioria dos funcionários atuava em horário integral, com salários e benefícios definidos, dá lugar ao aumento dos acordos de trabalho alternativos, como a contratação de profissionais para projetos específicos.
Ao mapear competências, as empresas passam a valorizar mais aspectos como a capacidade de interação social, uma vez que a necessidade de trabalhar em grupo e as interfaces entre diferentes áreas ganham espaço no dia a dia corporativo. “A empatia e a parte relacional, de comunicação, tornam-se diferenciais”, analisa Roberta Yoshida. Da mesma forma, a criatividade e o pensamento ético são características em alta, muito por conta de as conduções de atividades e as tomadas de decisão envolverem não só critérios técnicos, mas também humanitários, levando em consideração conceitos como os de sustentabilidade e diversidade.
Dessa forma, segundo o artigo da “Deloitte Insights”, as empresas precisam desenvolver novas abordagens de liderança e gerenciamento, que possam ajudar a construir culturas de aprendizado poderosas e motivar os trabalhadores a ir além da zona de conforto.
Os líderes, então, devem deixar para trás o estilo mais autoritário, muito ligado a ambientes moldados por tarefas e metas de rotina bem definidas. A onda passa a ser a da liderança colaborativa, capaz de extrair o melhor das equipes, com recompensas que passam pelo propósito e pelo impacto do trabalho realizado e pela oportunidade de crescimento e desenvolvimento.
Imperativos de liderança
A multinacional Johnson & Johnson nos oferece exemplos de políticas que contemplam as novas concepções de trabalho e de desenvolvimento profissional. Todas as estratégias de recursos humanos da companhia partem de quatro princípios, chamados de “imperativos de liderança”. “Eles permeiam toda a organização”, afirma Guilherme Rhinow, diretor de Recursos Humanos da Johnson & Johnson para o Brasil. E estão intimamente ligados às tendências apontadas pelos consultores.
O primeiro dos princípios é o de conectar – buscar novas maneiras de avançar na inovação e no crescimento, ligando pessoas, ideias e oportunidades para identificar necessidades não atendidas. A ele se seguem os de moldar – transformar insights em produtos e soluções que agreguem valor aos clientes; liderar – criar um ambiente propício para fazer o melhor trabalho possível, mobilizando e inspirando as equipes; e realizar – atuar com rapidez e agilidade.
O processo de avaliação de desempenho dos profissionais na empresa, por sua vez, segue um protocolo batizado de “Cinco Conversas”. Ao longo do ano, os líderes devem efetivar, no mínimo, cinco encontros com os integrantes de suas equipes para balizar, acompanhar e rever as rotas de desenvolvimento dessas pessoas. “Cinco é uma quantidade mínima”, destaca Rhinow. “A ideia é que essas conversas ocorram de maneira efetiva no cotidiano com uma frequência cada vez maior.”
Nelas, os funcionários discutem com os líderes seus objetivos e expectativas em relação ao trabalho, e, em contrapartida, ficam sabendo com clareza sobre aquilo que se espera deles. Nesse cenário de fluxo transparente de informações, os profissionais podem mirar caminhos em direções variadas, visando a oportunidades em diferentes áreas, segmentos de negócio do grupo – bens de consumo, área médica ou farmacêutica – ou mesmo em outros países. Em paralelo, a multinacional disponibiliza cursos e materiais de capacitação internos; quando necessário, também recorre a auxílio externo nesse sentido.
As avaliações de desempenho também obedecem a critérios que extrapolam a simples percepção dos líderes diretos dos profissionais. “Os pareceres de clientes relevantes nas relações estabelecidas pelo funcionário também são considerados na análise”, afirma Rhinow.
Em termos de ambiente físico de trabalho, a Johnson & Johnson adota modelos de espaço de trabalho que prezam pela flexibilidade. “Não há mesas fixas”, diz o diretor de RH. “As pessoas ocupam os espaços que são mais adequados para os projetos ou as tarefas que têm de produzir.”
Os horários de entrada e de saída dos empregados também não são rígidos. A corporação quebra ainda, culturalmente, os engessamentos da hierarquia ao não “assinar” as salas de vice-presidentes e presidentes – eles não têm exclusividade sobre elas. “Quando estão fora, em viagens, por exemplo, essas salas podem ser usadas por outros profissionais”, assinala Rhinow.
Uma constituição mais integrada na consecução das tarefas do trabalho está de acordo com a tendência de um ambiente em que o sentimento de colaboração, e não o de concorrência, predomina entre os indivíduos. “Todo mundo cresce junto”, sintetiza Daniela Diniz, diretora de Conteúdo e Eventos da empresa global de pesquisa e capacitação Great Place to Work. As práticas de economia colaborativa, por sinal, dão o tom também entre as organizações que competem no mercado e passam a estabelecer parcerias nos moldes do “ganha-ganha”, juntando forças e expertises para que seus negócios prosperem em conjunto.
O futuro do trabalho muito se pauta pela diversidade e pela inclusão. Pressões sociais estabelecem a necessidade de as empresas contemplarem questões ligadas a etnias, gênero e faixas etárias. Fatores como o envelhecimento da população e a maior longevidade da atuação profissional dos indivíduos requerem o preparo das corporações para alocar essa força produtiva em seus quadros, lembrando que essa alocação pede o estabelecimento de políticas que facilitem o convívio entre gerações distintas.
Na Johnson & Johnson, iniciativas como a “Mulheres sem Barreiras”, plataforma criada para que as profissionais levantem pontos de interesse para o universo feminino no trabalho, e o projeto Open and Out, que se propõe a dar voz às necessidades do público LGBT, vão ao encontro das novas perspectivas sociais. “Nos níveis de liderança da companhia, 50% das posições são ocupadas por mulheres”, dimensiona Rhinow.
Em face de tantas transformações nos meios corporativos, é possível dizer que o futuro do trabalho já é seu presente. Nesse contexto, pode-se afirmar também que, se fossem lançar uma versão atualizada dos Jetsons, o estúdio Hanna-Barbera teria de rever profundamente o perfil de sr. Spaceley e os moldes de sua relação com George Jetson.