Cidades sustentáveis – movidas a dados
Para lidar com os desafios crescentes das grandes cidades, o setor público se une à iniciativa privada para desenvolver novos modelos e soluções inovadoras, com base em dados e tecnologias digitais. Os resultados? Serviços aprimorados, mais eficiência, melhor ambiente de negócios e qualidade de vida.
Dezembro 2019 | Fevereiro 2020“Quando o fardo da presidência parece muito pesado, eu sempre penso que poderia ser pior. Eu poderia ser um prefeito”. O autor da frase é Lyndon Jonhson, que assumiu a presidência dos Estados Unidos em 1963, após o assassinato de John Kennedy e teve de lidar com desafios hercúleos, como a Guerra do Vietnã. Por trás dela, está a ideia de que prefeitos de grandes cidades têm de cuidar de temas muito prementes na vida das pessoas, como mobilidade urbana, saúde e educação, que impactam o cotidiano dos cidadãos de uma forma mais direta (ou pelo menos mais perceptível) do que questões diplomáticas ou orçamentárias.
A vantagem dos prefeitos de hoje em relação aos contemporâneos de Johnson é o arsenal de novas tecnologias digitais que, se bem utilizado, pode melhorar de forma exponencial a qualidade de vida das pessoas. Se a tecnologia é o elo transformador, que torna um espaço formado por prédios, ruas e praças em um lugar agradável e eficiente, o grande impulsionador desse movimento está na adoção de novos modelos de gestão, que surgem por meio de parcerias entre público e privado.
Essa colaboração, por sua vez, gira frequentemente em torno dos milhões de dados gerados pelos moradores de uma cidade – a partir de agendamentos de consultas médicas, deslocamentos, pedidos de serviços às prefeituras e uma infinidade de outras ações e manifestações. “O setor público e a iniciativa privada coletam dados que, se bem utilizados, fornecem insights cruciais para melhorar os serviços em grandes cidades”, diz Elias de Souza, sócio-líder da Deloitte para a indústria de Governo e Serviços Públicos.
Por melhores que sejam as intenções, os gestores públicos encontram obstáculos para o bom uso dessas informações. Por isso, cresce a tendência da análise dos dados, que passam a ser utilizados por startups e empresas de tecnologia no desenvolvimento de soluções que visam melhorar a vida das pessoas. “Temos muitos dados e não conseguimos trabalhar com todos eles”, diz Daniel Annenberg, secretário de Inovação de São Paulo. “As parcerias com a iniciativa privada são fundamentais para encontrarmos boas alternativas.”
Dados em tempo real
Uma área que tem se mostrado promissora nessa simbiose é a mobilidade urbana. Um dos melhores exemplos de sucesso no País é o Laboratório de Inovação em Mobilidade (MobiLab), em São Paulo. Criado pela Prefeitura no contexto das manifestações populares que pressionavam pela qualidade dos serviços públicos em 2013, o MobiLab funciona como um fomentador de pesquisas e parcerias com startups para responder, com base em dados e tecnologia, aos desafios da gestão do trânsito da quinta cidade mais populosa do mundo. Desde sua concepção, foram criados diversos apps e serviços – como o Cadê o Ônibus, que permite o usuário ver em tempo real onde estão os veículos, a previsão de chegada e o itinerário, entre outras informações.
“Os estudos indicam que é mais eficiente para o setor público abrir os dados gratuitamente”, diz Simon Dixon, líder global da Deloitte para o setor de Transportes. “Nesse cenário, o governo orquestra tudo, com o apoio da iniciativa privada.”
Às vezes, a parceria ocorre na via oposta. Antes do desenvolvimento de tecnologias como computação em nuvem e big data e da popularização de aplicativos de transporte, saber de forma precisa como os moradores das grandes cidades se deslocavam dependia de pesquisas feitas por entrevistas e amostragem. “Por melhores que fossem, elas nunca conseguiam espelhar a realidade da jornada diária do usuário ou cidadão”, diz Elias de Souza, da Deloitte. “Sem informações precisas, o gestor não podia adotar as melhores políticas.”
Promover desenvolvimento econômico, criar um ambiente sustentável e melhorar a qualidade de vida do cidadão devem ser os focos das cidades inteligentes Elias de Souza, sócio-líder da Deloitte Brasil para a indústria de Governo e Serviços Públicos
Hoje, aplicativos como o Waze conseguem sugerir, em tempo real, os melhores trajetos aos motoristas. Nesse processo, acumulam milhões de informações sobre os padrões de deslocamento das pessoas. Isso é ouro para um gestor de trânsito de uma grande cidade. “Ao entender o comportamento dos motoristas, é possível identificar o melhor momento para reparos e consertos de vias e também para modificações na estrutura de trânsito de uma cidade, uma vez que o app estabelece horários e fluxos diários de veículos”, explica Thaís Blumenthal de Moraes, líder global do Programa de Cidadãos Conectados (CCP, na sigla em inglês) do Waze. O CCP é um programa que define parcerias com prefeituras e outras instituições públicas, permitindo interações em tempo real entre o gestor público e a população. Por exemplo, um motorista pode usar o aplicativo para comunicar um semáforo queimado ou um buraco na via; e o gestor tem um canal para informar os motoristas sobre obras e mudanças no tráfego. Criado em 2014, o CCP tem aproximadamente 1.000 parcerias no mundo.
Outros aplicativos estabelecem esse diálogo entre governo e população. Um deles permite avisar a prefeitura sobre um buraco em determinada rua (a mensagem é enviada com foto e informações sobre a geolocalização), solicitar poda de árvores, e mais 800 serviços de zeladoria. “A digitalização do processo permite o planejamento do serviço, otimizando o atendimento por regiões, o que aumenta a produtividade e eficiência do serviço público”, diz Annenberg.
O apoio da tecnologia é visível também em outras áreas, como a da saúde. Os usuários da rede pública municipal de São Paulo, por exemplo, já podem agendar consultas e exames médicos via aplicativo e evitar assim um deslocamento inútil. O app ajuda ainda a controlar a demanda e otimizar a oferta de serviços – mais uma situação de dados que, bem aproveitados, melhoram a gestão do sistema.
Parcerias de sucesso
A sinergia entre público e privado pode ser vantajosa para todos, como mostra o exemplo da Solar Palm, empresa focada no desenvolvimento de soluções urbanas sustentáveis. Em troca do direito de explorar publicidade, a empresa idealizou uma “praça high tech”, com diversos serviços tanto para a população quanto para as prefeituras. As pessoas ganham um espaço de convivência que promete ser seguro e com funcionalidades como acesso à internet e pontos para recarga de smartphone. Já a prefeitura passa a ter acesso a informações como temperatura e qualidade do ar, graças aos sensores que medem esses e outros indicadores, além de câmeras de segurança com reconhecimento facial. A organização também promove melhorias na iluminação e nas calçadas do entorno.
A troca mais interessante, porém, ocorre por meio de um app que incentiva ações sustentáveis por parte dos moradores e comerciantes locais. Por exemplo: quem contratar um funcionário que more na região ganhará pontos. Isso vale também para quem oferecer e pegar caronas via app e reduzir o consumo de água e eletricidade. Esses pontos poderão ser trocados em estabelecimentos comerciais parceiros do projeto. “Queremos tornar as cidades mais aprazíveis e, para isso, precisamos requalificar o espaço urbano e incentivar a adoção de medidas sustentáveis”, afirma a arquiteta Patrícia O’Reilly, sócia da Solar Palm.
Foco nas pessoas
Na tragédia “Coriolano”, de William Shakespeare, o personagem Sicínio Veluto, tributo do povo, diz: “O que é uma cidade a não ser suas pessoas?”. A peça foi escrita em 1608, mas, como quase tudo na obra do dramaturgo inglês, continua atual. Como ressaltam os especialistas, a tecnologia deve ser o meio para a obtenção de algo maior, que é melhorar a vida das pessoas. “Não se pode investir em tecnologia se ela não tiver um propósito muito claro de aumentar a inclusão social”, diz Dixon, da Deloitte. E, em muitas situações, a disruptura provocada pelas pessoas pode ser mais impactante do que aquela provocada pela tecnologia.
A tecnologia, se usada dentro de um contexto adequado, pode ter um papel fantástico para melhorar a vida nas cidades Simon Dixon, líder global da Deloitte para o setor de Transportes
Assim como acontece com organizações de todos os setores, a mera adoção de inovações tecnológicas não é suficiente. É preciso realizar as adaptações necessárias para aproveitar as oportunidades que essas ferramentas proporcionam e transformá-las em benefícios concretos.