Capacitação na era da transformação
Empresas e instituições de ensino se organizam cada vez mais em ecossistemas e, reunidas, buscam atualizar a formação de profissionais de acordo com as novas demandas do mundo digital e da Indústria 4.0.
Junho-Agosto | 2019Imagine-se na posição de um jovem que acabou de obter seu diploma de graduação. Confiante, ele entra no mercado de trabalho certo de ter passado pelos conteúdos acadêmicos mais atualizados em sua área de atuação. Como dizer a esse jovem hipotético que, dentro de cinco anos, mais de um terço do que ele aprendeu não valerá coisa alguma? O alerta vem do estudo “The Future of Jobs: Employment, Skills and Workforce Strategy for the Fourth Industrial Revolution”, publicado pelo Fórum Econômico Mundial. O documento aponta que, em média, 35% das competências desenvolvidas hoje por profissionais em um amplo número de setores (mídia, varejo, saúde, energia, serviços, TI, mobilidade, infraestrutura e mercado financeiro) se tornam “instáveis” em meia década – ou seja, caminham para perder utilidade.
É justamente para evitar o dilema de nosso universitário fictício que empresas e outras organizações vêm criando ecossistemas colaborativos com instituições de ensino. É uma via de mão dupla: o mercado participa da construção de um novo perfil de profissional, adequado às rápidas transformações tecnológicas e sociais de nossos tempos, e o mundo acadêmico atualiza suas ementas ao absorver experiências e demandas reais das empresas.
Segundo Ana Mocny, diretora da prática de Consultoria em Gestão de Capital Humano da Deloitte, as competências requisitadas pela transformação digital no mundo dos negócios representam a grande lacuna nos currículos da força de trabalho brasileira. “São muitos os desafios para quem quer manter sua empregabilidade nos próximos anos. Há uma revolução em curso, com base em temas que até pouco tempo não faziam parte da nossa formação”, diz a especialista. “Ecossistemas reunindo empresas e instituições acadêmicas são um meio de combinar vivências práticas e novas referências conceituais, beneficiando a todos. As empresas têm o desafio de criar espaços adequados para essa colaboração.”
Como é possível prosseguir em uma jornada de carreira nos dias de hoje? Ao se reunirem com escolas, institutos e universidades, as empresas compartilham experiências e aceleram a qualificação dos profissionais, Ana Mocny, diretora da prática de Consultoria em Gestão de Capital Humano da Deloitte.
Defasagem gera perda de competitividade
O atraso na atualização dos currículos e na preparação dos profissionais tem impacto direto na competitividade do País. É a visão de Paulo Magalhães Sardinha, presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH). “Com o desemprego em alta, o que afeta em especial os jovens recém-formados, o profissional já chega na empresa com o currículo defasado, o que gera atraso na formação de lideranças e reduz o potencial de produtividade”, explica Sardinha. “De modo geral, as empresas brasileiras têm se esforçado para reduzir esse descompasso. Em comparação a outros países latino-americanos, estamos bem, mas há um abismo entre o Brasil e países como a Alemanha e o Japão.”
Para o dirigente da ABRH, há também um impasse cultural a superar. “Muita gente ainda teme o digital e as transformações que ele traz. Isso vale tanto para a sociedade quanto para as empresas: um receio em se adaptar”, diz. Sardinha acredita que capacitações especificas (como MBAs), voltadas para o mercado e pensadas em conjunto com a academia, podem minimizar o problema. “É preciso criar uma carreira nova: o gestor de tecnologia, o profissional que vai mostrar que a transformação digital não chegou para afastar as pessoas e sim para integrá-las.”
O dado sobre a veloz obsolescência dos conteúdos acadêmicos citado no primeiro parágrafo é lembrado por Osvaldo Lahoz, gerente de Inovação de Tecnologia do Senai São Paulo. “É um percentual preocupante e que se refere à economia mundial, não apenas à brasileira”, diz Lahoz. “As competências perdem sua razão de ser devido à marcha rápida da tecnologia. E isso vale também para as capacitações internas feitas pelas empresas. É preciso que as organizações busquem realimentar o sistema educacional. Quem cuida do capital humano nas empresas deve estar ciente disso.”
O Senai busca fazer sua parte com a atuação de comitês técnico-setoriais que reúnem educadores e dirigentes de diversos setores da indústria. “Tudo o que pensamos em termos de inovação é demandado pela necessidade de aumentar a competitividade da indústria”, diz o professor Lahoz. Entre as atividades desenvolvidas, incluem-se assessorias tecnológicas, capacitação para a Indústria 4.0, laboratórios para experimentação prática de novos processos e produtos e iniciativas de “intraempreendedorismo”. “É uma sintonia estreita com as empresas”, confirma o gerente do Senai.
O papel das empresas na atualização dos currículos
O estudo da Deloitte “Reimagining Higher Education” apresenta alguns passos que as empresas podem seguir para garantir que sua força de trabalho esteja sintonizada com as transformações contemporâneas. De acordo com a análise, um terço das companhias nos Estados Unidos sofre com a incapacidade de preencher vagas que exijam competências atualizadas. Para evitar essa situação, as organizações podem:
– Reconhecer formações acadêmicas alternativas: nem todo conhecimento precisa ser obrigatoriamente obtido em universidades. Cursos técnicos, disciplinas livres e graduações online são exemplos;
– Reconfigurar o processo de seleção de talentos: o mundo digital oferece múltiplas experiências e oportunidades de obter competências que nem sempre são consideradas nos processos de seleção tradicionais;
– Adotar um modelo de educação continuada: as iniciativas de capacitação das empresas devem contemplar um mundo em que o aprendizado e a reciclagem devem ser constantes.
Em sintonia com o mercado de trabalho
Outros exemplos recentes de integração entre empresas e o meio acadêmico, voltados ao aprimoramento da formação de profissionais, podem ser destacados. Um projeto da Trevisan Escola de Negócios promoveu a integração entre professores e profissionais do segmento de auditoria em atividades de pesquisa e reciclagem acadêmica. Já na PUC-Rio, consórcios reunindo a equipe da IAG–Escola de Negócios e empresas como Deloitte, Vale e IBM ofereceram encontros abertos ao público, com debates sobre temas como o uso de analytics aplicado à gestão de pessoas e o estímulo à diversidade em ambientes corporativos.
“Há uma necessidade acelerada de reciclagem e capacitação, em um ritmo quase diário. Os profissionais não podem ficar longe da academia e vice-versa”, acredita Antoninho Marmo Trevisan, fundador da Trevisan Escola de Negócios, que acompanhou a integração entre os educadores e os profissionais da Deloitte. A parceria, que vai prosseguir em 2019, incluiu a construção de um curso de ciências contábeis ministrado de forma remota, adequado às movimentadas agendas dos auditores. “Surgiu uma demanda específica de atualização de conteúdo. Atuamos de forma muito próxima junto aos auditores, compondo equipes, organizando debates. A experiência de aprender em um ambiente universitário é muito mais rica”, detalha Trevisan. Ele lembra que o projeto mereceu elogios de representantes da Rutgers University, uma das mais tradicionais escolas de negócios dos Estados Unidos.
Coordenadora da formação do MBA em Recursos Humanos do IAG-PUC, Eliane Santos Leite enxerga múltiplas possibilidades na intersecção entre escolas e empresas. “É um ecossistema fundamental para a recriação dos currículos profissionais. Uma oportunidade de cooperação entre stakeholders que compartilham competências, com foco em um propósito comum”. As experiências da universidade carioca nessa seara terão continuidade com o Laboratório de Inovação Pedagógica, unidade que o IAG está implementando sob direção da graduação do curso de Administração de Empresas. “É um exemplo concreto da superação do velho preconceito de que ‘academia pensa e empresas produzem’. Vamos ouvir as empresas para atualizar os currículos do curso de Administração, em busca de uma verdadeira complementariedade.”
No projeto desenvolvido na PUC-Rio, Ana Mocny participou de discussões sobre as possibilidades abertas pela transformação digital na área de recursos humanos. “Há uma dificuldade grande das empresas em acelerar o emprego de recursos como analytics e inteligência artificial na gestão de pessoas”, relata Ana. “Os dados estão lá, mas falta gente capacitada para lidar com eles e usá-los em análises interessantes. E as empresas se ressentem disso. A união entre instituições de ensino, empresas e outras organizações vai fomentar essa capacitação.”