A estratégia das empresas digitais
O caminho da maturidade digital demanda mudanças profundas nas organizações, com comprometimento, investimentos e liderança assertiva. É o que indica um estudo internacional da Deloitte, em parceria com uma publicação do MIT.
Janeiro-Março | 2018De tempos em tempos, o mercado conhece revoluções importantes, que impactam fortemente organizações de todos os setores. A introdução de máquinas movidas a vapor, no século 18, foi a Primeira Revolução Industrial. No final do século 19, eletricidade e linhas de produção possibilitaram a produção em massa. A Terceira Revolução foi marcada pelo desenvolvimento dos computadores no século 20, o que permitiu às indústrias automatizar atividades que antes dependiam do trabalho humano.
Hoje, o mundo vive o alvorecer da Indústria 4.0, em que a tecnologia deixa de ser apenas uma ferramenta. Ela afeta tanto o modo de produção quanto os hábitos de clientes e consumidores – seja em uma startup ou em uma grande corporação. Inovações como Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês), robótica avançada, data analytics e Inteligência Artificial já mudaram e prometem alterar ainda mais o ambiente de trabalho no século 21.
Não é por acaso que, atualmente, a maioria das organizações incorpora uma ou todas essas tecnologias para dizer aos seus públicos de interesse: “sou digital”. Mas elas são mesmo? Um estudo da Deloitte e do MIT (Massachusetts Institute of Technology) Sloan Management Review – “Achieving Digital Maturity – Adapting your company to a changing world” – mostra que a situação não é exatamente essa. Muitas organizações ainda estão longe de serem consideradas efetivamente uma “empresa 4.0”.
A pesquisa entrevistou executivos de 117 países e 29 setores da atividade econômica. Quase 5% das respostas vieram do Brasil, país com a terceira maior participação no estudo. Os entrevistados foram incentivados a imaginar “uma organização ideal, transformada por tecnologias e ferramentas digitais que melhorem os processos, engajem talentos e produzam novos modelos de negócios geradores de valor”. Em seguida, os executivos foram convidados a avaliar sua empresa tomando esse ideal como referência.
Apenas um quarto dos respondentes se enquadrou no conceito de maturidade digital – que é a capacidade das empresas em se adaptar com sucesso às mudanças provocadas pelas inovações tecnológicas. Outros 42% dos respondentes estão nos estágios intermediários de desenvolvimento; e 34%, nas etapas iniciais.
De acordo com o relatório, 40% dos cerca de 3.500 executivos entrevistados afirmam que suas empresas precisam melhorar a estratégia e o modo de inovar para se diferenciar e alcançar a maturidade digital. Essa virtude pressupõe ir muito além da mera adoção de novas ferramentas, que são apenas parte da jornada. De fato, muitas empresas adotam tecnologias de ponta, mas não se tornaram 4.0 ainda.
A pesquisa buscou identificar as características das empresas bem-sucedidas nesse processo e das que ainda estão no começo do caminho – e entender o que as separa. Segundo a publicação, 80% das empresas com maturidade digital indicaram ter um planejamento claro e coerente, ante 19% que demonstraram uma atitude oposta. Afinal, se 85% dos executivos entrevistados concordam com a ideia de que ser uma empresa 4.0 é importante para a evolução da companhia, por que a maioria delas ainda luta com isso?
As empresas de sucesso souberam criar uma cultura digital que permeia todas as áreas e, principalmente, usam a tecnologia para impulsionar o negócio e não apenas melhorar processos., Fabio Pereira, sócio de Consultoria da Deloitte, especialista em tecnologia e líder do CIO Program da organização.
Algumas características colaboram para esse amadurecimento. Entre as principais, certamente estão o grau de tolerância ao risco e a agilidade em lidar com o erro. Pouco mais de 70% dos entrevistados de empresas com maturidade digital incentivam a tomada de risco, contra 29% das organizações que estão nas primeiras etapas. “Para inovar, as companhias devem fomentar a cultura que abraça o risco e criar um ambiente em que os colaboradores se sintam confortáveis em permanecer”, diz Gerald Kane, editor da MIT Sloan Management Review.
Outra qualidade dessas organizações é que elas, efetivamente, atuam para construir um ambiente 4.0 – investindo tempo, recursos e pessoas. As empresas menos avançadas, pelo contrário, discutem o tema, sem, no entanto, transformar as palavras em ações. Nessa situação de quase apatia, a “mágica”, ou seja, integrar o digital na estratégia de negócios, raramente acontece. O resultado? Cerca de 75% das organizações com alto grau de maturidade afirmam utilizar a tecnologia para fazer negócios com uma abordagem inovadora, em comparação com 32% dos entrevistados das empresas que estão na outra ponta.
Ser digital é entender como as novas tecnologias alteram os negócios e conseguir navegar nesse cenário. Quando isso acontece, esse conceito deixa de ser um mero clichê e ganha um significado. Como constata David Cotteleer, vice-presidente e CIO da montadora de motocicletas Harley-Davidson, em depoimento à pesquisa: “Todos falam em ser digitais. Mas não basta criar uma estratégia para isso. É preciso olhar para o negócio por uma perspectiva digital para descobrir onde a tecnologia pode fazer a diferença”.
No Brasil, o Grupo Boticário tem essa ideia como premissa para seus projetos. Em 2016, foram criadas as Ânforas, ou “lojas do futuro”. Esses locais prometem oferecer uma experiência personalizada ao consumidor – e a tecnologia atua para alcançar esse objetivo. Por meio de um aplicativo instalado no smartphone do consumidor, o atendente tem acesso a dados pessoais, preferências e histórico de compras. Com essas informações, pode sugerir produtos mais próximos do gosto do cliente. Para conferir mais agilidade no atendimento, o sistema tornou caixas para pagamento – e suas filas – totalmente dispensáveis. A compra pode ser finalizada diretamente com o vendedor. “Nossas soluções digitais são pensadas para solucionar problemas e encantar os clientes”, diz Nicolas Simone, CIO do Grupo Boticário, que já conta com 70 lojas do futuro.
Armadilha do imediato
Algumas deficiências das empresas no início do desenvolvimento digital dão pistas valiosas para entender os cases de sucesso. Uma delas é não ter pensamento de longo prazo. O estudo identificou que o número de empresas digitalmente maduras que planejam ações num horizonte de cinco anos é mais do que o dobro do que entre as empresas em fase inicial do processo.
O planejamento digital da fabricante de alimentos Ajinomoto, por exemplo, mira 2025. “Temos um plano de expansão agressivo e devemos preparar a empresa para ele”, diz Alexandre Telles, gerente de TI da Ajinomoto. “Precisamos nos adequar para continuarmos a ser relevantes para nossos consumidores, que podem ter hábitos diferentes daqui alguns anos.” O plano da empresa tem três etapas: fundação, consolidação e excelência. Na primeira, o tema principal nem aparece. “Queremos revisitar o core business da empresa para prepará-la para a próxima etapa”, diz Telles.
Outro ponto comum das empresas que não evoluem na mesma velocidade das vanguardistas da jornada da maturidade digital é a falta de times multifuncionais para implementar projetos, além da existência de uma estrutura gerencial que dificulta o processo de inovação. O resultado é que muitas dessas organizações tentam impor uma cultura digital de forma mandatória pelos seus líderes, como se essa transformação pudesse ser alcançada por meio de uma ordem. As empresas mais inovadoras seguem o caminho oposto: elas já ultrapassaram a expectativa de que todos os colaboradores tenham visão para abraçar os projetos digitais e cultivam uma postura que permeia toda a empresa. Mais do que isso, oferecem recursos e oportunidades para que essa cultura prospere.
No ano passado, o Grupo Boticário criou o Botilabs – um ambiente de coworking instalado na sede da empresa, em São José dos Pinhais (PR) – para integrar profissionais de diferentes áreas internas, startups e empresas parceiras. O intuito é pensar em inovações para manter os produtos da marca relevantes.
No Botilabs, uma equipe faz a triagem das melhores ideias. As iniciativas aprovadas são testadas internamente ou em algumas lojas do grupo. Dependendo do resultado, a ação é imediatamente implantada ou fica em uma “prateleira”, para ser usada em um momento mais propício. “Criamos uma estrutura que aceita o erro e atua com agilidade em um ambiente multidisciplinar”, diz Nicolas Simone.
Empresas com esse posicionamento entram em um círculo virtuoso: o fato de serem digitais estimula a continuidade nessa trajetória. O estudo da Deloitte mostrou que quase 80% das empresas 4.0 planejam aumentar os investimentos nesse segmento nos próximos meses. Em pouco tempo, a distância que separa as empresas de ponta dessa revolução em relação às que não têm gasto tempo e dinheiro suficientes para implementar suas estratégias digitais aumentará significativamente.