A dívida que vira investimento
Os créditos não performados, que hoje representam R$ 400 bilhões em dívidas vencidas no Brasil, são atrativos para agentes internacionais em busca de investimentos estruturados e podem contribuir para o saneamento de empresas e setores da economia
Julho-Setembro | 2017
A economia brasileira tem vivenciado um período que combina recessão e estagnação, com consequências que podem movimentar um grande mercado ao qual investidores de todo o mundo estão atentos: o de créditos não performados. Os Non Performing Loans (NPLs ultrapassam atualmente os R$ 400 bilhões em dívidas vencidas no Brasil, segundo dados do Banco Central. No atual contexto econômico do Brasil, o mercado de NPL pode crescer ainda mais.
Investidores em NPLs de todo o mundo sempre monitoram os países ou as regiões em crise econômica, em busca de mercados com potencial. Aconteceu isso com os tigres asiáticos no fim da década de 1990, depois com o México e a Argentina e, em seguida, na crise de dívida da Europa, no fim da década passada.
O principal formador desse mercado no mundo hoje são os europeus, que transacionam centenas de bilhões de euros com as dívidas de empresas de pequeno, médio e grande portes, e em que há uma parte mínima em carteira de dívidas de consumidores. Por esse motivo, o Brasil oferece um enorme atrativo. Dos R$ 400 bilhões de NPLs estimados no País, 80% são de consumidores e estão nas mãos dos bancos, principalmente.
Para as instituições financeiras, no entanto, é um desafio gerenciar os NPLs, uma vez que este não é o seu foco. Além disso, a inadimplência causa um efeito negativo na economia porque os bancos cortam crédito, provocando impacto no mercado. Assim, eles ficam expostos em sua atividade porque parte da sua carteira está inadimplente. Em todo o mundo, esta é a lógica. Tudo tem relação com o ciclo econômico, que não deve mudar no curto prazo no Brasil.
Guilherme Macêdo, professor da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), explica que, depois de um ano de inadimplência, os bancos estão autorizados a registrar o prejuízo e a dar baixa desses créditos para limpar o balanço. “É nesse momento que o mercado passa a se formar”, explica Macêdo. Quem compra esses créditos são empresas especializadas em ir atrás dos inadimplentes, em processos jurídicos, ou fundos de hedge (mais focadas em empresas em recuperação judicial).
“É um grande mercado, muito amplo e com a venda da carteira em um enorme deságio. O investidor compra por 10 o que custaria 100 e vai atrás de recuperar o que conseguir. Muitos deles têm empresas especializadas na cobrança e utilizam tecnologias avançadas para comprovar que inadimplentes têm recursos para quitar dívidas. O retorno é muito bom, apesar do risco, que também é alto.” Macêdo ressalta que a cobrança do inadimplente varia de acordo com o perfil da dívida, o processo judicial e a existência de bens no processo.
Para Luis Vasco, sócio da Deloitte que lidera a prática de Reestruturação Empresarial no Brasil, os riscos podem ser mitigados e precificados no momento da compra da carteira. “Devem ser identificados e tratados separadamente créditos sem comprovação de existência e aqueles ligados a fraudes, por exemplo. Adicionalmente, devem-se observar questões regulatórias e aquelas relacionadas ao processo legal de cobrança. A recuperação depende muito das características do crédito e da idade média da carteira, além, é claro, da estratégia de cobrança aplicada pelos investidores.”
Existem dois grandes mercados de NPLs: dívidas de consumidores e de empresas. No Brasil, atualmente, as principais carteiras são de consumidores e há ainda algumas empresas grandes em recuperação judicial. “Temos um grande portfólio para explorar, especialmente depois das dificuldades pelas quais têm passado as empresas das cadeias de óleo e gás e de infraestrutura. Nesse cenário, os NPLs são a oportunidade de criação de um fluxo virtuoso de recuperação de empresas e setores”, analisa Marcia Yagui, diretora da área de Reestruturação Empresarial da Deloitte.
Boas e grandes transações de créditos não performados devem criar um fluxo de volumes que incentivam a participação ativa de grandes investidores nacionais e internacionais no saneamento de empresas e, consequentemente, de setores e da economia como um todo., Luis Vasco, sócio da Deloitte que lidera a prática de Reestruturação Empresarial no Brasil.
Vasco afirma que o maior mercado de NPLs hoje é o da Europa, estimado em € 2 trilhões. “Nos padrões internacionais, o prêmio de retorno é de 25%. No Brasil, as principais transações com volume e que seguirem padrões internacionais deverão capturar o prêmio de entrada de novos investidores.”
Recuperação é o objetivo
No Brasil, a Instrução nº 444 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) determina as especificações desse tipo de crédito. “Quando um fundo de hedge compra dívidas de empresas em recuperação judicial, funciona como um fundo de private equity. O investidor entra na operação para mudar toda a estrutura e tentar reverter o quadro porque tem interesse de que a empresa se recupere para reaver dinheiro. Portanto, esses fundos atuam como donos, no sentido de melhorar aquela estrutura, para depois poder vender melhor os NPLs ou se manterem como sócios de uma empresa que recuperou a saúde financeira”, afirma Guilherme Macêdo, da UFRS.
Na prática, esse mercado tem outro lado positivo. Como os novos credores vão atrás dos inadimplentes para cobrá-los, há uma reversão da dívida em pagamento, muitas vezes, como negociação da forma de quitação. Depois que isso acontece, o histórico do inadimplente fica limpo.
Os bancos no Brasil têm oferecido de forma tímida NPLs, mais concentrados em consumidores. “Isso tem crescido, mas não quer dizer necessariamente que haja um mercado; é preciso formá-lo. Para vendas de créditos de empresas, existem garantias como máquinas, imóveis e veículos. Para a carteira de consumidor inadimplente de cartão de crédito, cheque especial e leasing, por exemplo, não há garantias”, explica Marcia Yagui, da Deloitte.
O mercado precisa ser desenvolvido para aproveitar esses ativos, comenta Marcia. “O banco cria valor com seus créditos não performados vendidos porque faz negócio com eles e estes voltam para seu negócio. E os investidores recuperam os créditos porque têm know-how nisso. Então, é uma situação de ganha-ganha para o banco.”
A grande questão é como começar a vender os NPLs em escala. Os bancos já começam a vender pequenos portfólios. Alguns já criaram empresas com foco nessa cobrança, porém, em um negócio separado da atividade bancária. Segundo Marcia, o momento agora é vender para os grandes investidores. “Há muito potencial para a comercialização de NPLs; os estrangeiros estão esperando isso. O tamanho da ‘torta’ no Brasil depende de como a crise vai se desenrolar.”
As empresas especializadas em créditos não performados extraem valor porque vão atrás dos ativos e geram benefícios para todos., Marcia Yagui, diretora da área de Reestruturação Empresarial da Deloitte.
Futuro próspero
Manuela Larangeira, managing partner da Jive Investments, acredita que o volume de NPLs entre as empresas de grande porte deve continuar crescendo nos próximos meses, como reflexo do número de pedidos de recuperação judicial, por terem sido afetadas pela recessão nos últimos dois anos. Continuarão crescendo também o estoque de operações de empresas em dificuldades financeiras e o impacto das investigações sobre corrupção e lavagem de dinheiro da Polícia Federal. “De forma geral, as empresas ainda estão sendo afetadas pelo ambiente de queda na atividade econômica, altas taxas de juros e políticas de crédito mais conservadoras do lado dos bancos. Diante disso, a expectativa da Jive Investments é a de um aumento no volume de operações nesse segmento.”
O indicador de ativos problemáticos do Banco Central passou de 6,15% do total da carteira de crédito em dezembro de 2012 para 7,94% no mesmo mês de 2016. “Em termos de valores, isso representa um volume adicional de aproximadamente R$ 100 bilhões, o que reflete um aumento de 69,4% no período.”
Manuela explica a diferença prática entre os tipos de crédito. “Uma carteira empresarial costuma possuir créditos com valores maiores, dívidas acima de R$ 100 mil, ajuizadas, e quase sempre com o aval dos controladores da empresa. Diante disso, o trabalho de recuperação de cada crédito deve ser customizado, levando em consideração as características individuais de cada devedor, o potencial de recuperação (existência de bens) e a executabilidade processual. Do outro lado, em uma carteira de varejo, estamos tratando normalmente com um volume massificado de indivíduos com dívidas menores (até R$ 5 mil em média), sem garantias e não ajuizado. Para esse tipo de carteira, a abordagem precisa ser de forma massificada, utilizando agências de cobranças, políticas de desconto e bases estatísticas, a fim de maximizar a recuperação da carteira.”
A empresa argentina Recovery abriu uma filial no Brasil em 2004 em busca de dívidas de empresas e de consumidores em atraso. Atualmente a empresa administra mais de R$ 40 bilhões em créditos. “Se olharmos para os balanços dos bancos nos últimos períodos, calculamos que esse mercado cresce R$ 100 bilhões todo ano. Outro dado interessante é que, no Brasil, há cerca de 60 milhões de pessoas negativadas. Esta é uma parcela considerável da População Economicamente Ativa”, detalha Flávio Suchek, Chief Executive Officer (CEO) do Grupo Recovery. “O público final tem muito a aprender sobre finanças pessoais e uso consciente do crédito”, conta Suchek.
Ainda que o cenário seja ruim para a atividade econômica brasileira, o setor de NPLs, que vive em razão da inadimplência, apresenta oportunidades. Esses créditos já chamam a atenção e, provavelmente, atraem os recursos de investidores globais em busca de investimentos estruturados que, como consequência, podem contribuir para o saneamento de importantes setores da economia do País. O jogo está em campo, basta aguardar a movimentação de grandes competidores.