Como vencer a maior crise dos últimos tempos
A pandemia provocada pelo novo coronavírus impôs um isolamento a bilhões de pessoas e chegou a praticamente paralisar a economia global. Os desafios para os negócios são imensos e sem precedentes. O que as empresas devem fazer para sobreviver a essa crise?
Julho-Setembro | 2020Até o capitão inglês James Cook atracar seu navio na Austrália, em 1770, as pessoas da época tinham a certeza de que todos os cisnes eram brancos. A descoberta da ave em território australiano rompeu uma crença que, como hoje sabemos, era sustentada em premissas bastante frágeis. Afinal, a ausência de evidência não pode ser confundida como evidência de ausência. Mais de dois séculos depois, o investidor Nassim Nicholas Taleb utilizou a história para batizar de “cisne negro” os eventos que, de tempos em tempos, assolam o mundo e que, em comum, são imprevisíveis e com resultados impactantes no ambiente de negócios.
Os efeitos provocados pela pandemia da Covid-19 já podem ser classificados como um dos maiores “cisnes negros” dos últimos cem anos. Diversos setores reduziram ou suspenderam suas produções – e os reflexos ainda estão longe de serem mensurados com precisão.
No final de março, o Fundo Monetário Internacional (FMI) declarou que o mundo vivia uma recessão. No Brasil, em junho, o próprio FMI e o Banco Mundial projetavam um tombo em torno de 8% para 2020; na média mundial, segundo essas mesmas fontes, a queda tenderia a ser de 5,2%. Essa espiral de destruição de valor pode levar à bancarrota milhares de negócios – pequenos e grandes. A situação impõe um desafio imenso aos gestores. Como gerir uma empresa em meio ao que pode se tornar uma das piores crises do capitalismo?
A Mundo Corporativo conversou com executivos de seis empresas, de diversos tamanhos e setores, para mostrar como elas estão lidando com o desafio de proteger os seus negócios e as suas pessoas. Em comum, todas criaram grupos para projetar os impactos da pandemia e adaptar suas operações para o novo cenário, adotaram uma gestão fortíssima de fluxo de caixa e criaram mecanismos para proteger seus colaboradores.
Apertando os cintos
“Em um momento em que muitas empresas se veem sem receitas, o pensamento deve estar focado na sobrevivência dos negócios”, diz Luís Vasco, sócio da área de Financial Advisory da Deloitte. E, para isso, é fundamental preservar o caixa. Analisar em detalhes todas as despesas – e cortar tudo o que for possível –, renegociar prazos com credores e fornecedores e, se necessário, buscar linha de crédito em bancos são ações recomendáveis. Se não for possível obter novas receitas, deve-se, ao menos, procurar créditos fiscais.
Segundo Vasco, que lidera a prática de Reestruturação e Recuperação Judicial de Empresas da Deloitte, um erro dos gestores é não ter clareza da gravidade da situação e postergar a tomada de decisões, na esperança vã de que a situação não se provará tão severa. “É comum não enxergar a amplitude da realidade como ela se apresenta”, diz o sócio da Deloitte. “O certo é fazer uma projeção de caixa de, no mínimo 90 dias, com atualizações diárias, e agir com tempestividade.”
Em um momento como o atual, o pensamento deve estar focado na sobrevivência dos negócios, Luís Vasco, líder de Reestruturação de Empresas da Deloitte.
Entender a seriedade da situação e tomar as decisões que o momento exige foi a postura adotada pela agência de eventos e entretenimento Dream Factory. A empresa foi obrigada a adiar para o segundo semestre dois dos seus maiores eventos, o Rio Montreux Jazz Festival e a Maratona do Rio, e viu os eventos para terceiros serem todos cancelados, como a festa do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) que marcaria os cem dias para a Olimpíada de Tóquio. “Até julho, não teremos nenhuma receita”, diz Claudio Romano, presidente da Dream Factory.
Ante esse cenário de escassez, a empresa criou um plano para redução de 30% nas despesas. Isso inclui o corte de 20% nos salários dos 120 funcionários, incluindo os sócios, e a renegociação de pagamentos com fornecedores. “Vamos pagar todo mundo, mas estamos buscando descontos.”
A crise levou os gestores a engavetar os projetos de expansão. É o caso da rede de alimentos naturais OakBerry Açaí, que, em pouco mais de três anos, abriu 220 lojas em diversos países. “A crise quebra um ciclo virtuoso de crescimento, mas, agora, a preocupação não é com o lucro”, diz Georgios Frangulis, um dos fundadores da marca. O foco é a continuidade da marca e dos cerca de 160 franqueados. “Suspendemos a cobrança de royalties e fundo de propaganda e colocamos nosso jurídico à disposição para ajudar as lojas a negociar os aluguéis”, diz Frangulis, que negocia linha de crédito para apoiar os franqueados, caso a situação persista por várias semanas.
Mapeamento dos riscos
A Covid-19 prova que as empresas precisam estar preparadas para todos os cenários – até para o mais catastrófico. Ainda que ninguém possa prever exatamente o que vai acontecer, é possível – recomendável, aliás – a criação de uma estrutura de governança para mapear os riscos potenciais e planejar as ações de resposta às crises, que podem ser de origem financeira, regulatória, operacional, estratégica ou cibernética.
Um estudo da Deloitte feito em 2019 com 165 executivos de empresas que atuam no Brasil mostrou que três quartos das organizações têm uma política de gestão de riscos formalizada, o que representa 26 pontos porcentuais mais do que na pesquisa feita em 2017. Porém, somente 26% estão nos estágios mais avançados, ou seja, têm uma gestão de risco integrada, consistente e alinhada aos objetivos estratégicos. “Quando as crises acontecem, as ações precisam ser coordenadas e centralizadas”, diz Anselmo Bonservizzi, sócio-líder da área de Risk Advisory da Deloitte. “A ausência de um comitê de gestão de crises, com papéis pré-definidos, amplifica ainda mais os problemas.”
Quando as crises acontecem, as ações precisam ser coordenadas e centralizadas., Anselmo Bonservizzi, sócio-líder da área de Risk Advisory da Deloitte.
A Aliança Navegação e Logística Hamburg Süd tem uma gestão de continuidade de negócios, que identifica os riscos e determina as ações a serem tomadas em caso de incidente. “Nosso programa avalia diversos tipos de risco que podem afetar nosso negócio e nos ajudou para esse momento que vivemos”, diz o CEO, Julian Thomas. Por melhor que seja o plano, os desafios são grandes. “O mundo ainda está tentando se adaptar a esse novo cenário e ninguém pode apontar a magnitude dos problemas.”
Revisitando os princípios
Situações como a pandemia de Covid-19 provocam estresse e podem levar os gestores a buscar soluções nos lugares errados, quando, na verdade, podem encontrá-las internamente – revisitando os valores e princípios da organização. Segundo Bonservizzi, isso reforça a cultura da empresa e unifica todos em prol do mesmo objetivo – salvar a organização. “É nas horas de crise que os valores precisam ser postos em prática”, afirma o sócio da Deloitte.
Essa foi a linha de ação escolhida pela fabricante de elevadores e esteiras rolantes Atlas Schindler. A multinacional, que está no Brasil desde 1918, tem na valorização das pessoas um dos seus cinco princípios. A empresa se orgulha do tempo médio dos funcionários na casa, que chega a 10 anos e meio. Quando o comitê de gestão de crise se reuniu para discutir o avanço da Covid-19, as primeiras decisões tomadas tiveram como objetivo proteger os seus colaboradores.
“No curto prazo, nossa preocupação foi manter as pessoas seguras e com saúde”, conta Carlos Augusto Junior, diretor de Pessoas e Comunicação da Atlas Schindler. As primeiras ações adotadas foram garantir o fornecimento de luvas e máscaras para os funcionários, dar férias para colaboradores no grupo de risco, intensificar a higienização na fábrica, localizada em Londrina (PR), e adequar o protocolo de atendimento dos técnicos, evitando o risco de contágio. Um exemplo: após a implementação dessas medidas, os executivos entraram em contato com os 150 técnicos responsáveis pela manutenção dos elevadores dos clientes para verificar se eles se sentiam mais seguros e, ao final, agradeceram a eles pelo trabalho feito. “Fazendo isso, valorizamos nossos profissionais e conseguimos, como consequência, manter os nossos serviços mais essenciais.” Esse é um exemplo de como colocar o propósito em prática.
Preparando a retomada
As empresas que entraram na crise capitalizadas e preparadas não apenas vão sofrer menos, como poderão se fortalecer nesse cenário. A recompra de ações próprias, no caso de empresas de capital aberto, é uma forma de aproveitar a queda no preço dos ativos – além de passar uma mensagem de confiança no próprio negócio. Outra é ampliar a participação no mercado comprando concorrentes. Algumas empresas, no Brasil e no mundo, estão fazendo isso nesse momento.
Os gestores também devem levar em conta que a crise passará – e a empresa precisa estar preparada para a retomada. Ao mesmo tempo em que ajusta o caixa para lidar com o período em que as lojas estiverem fechadas, a varejista de moda Cia Hering planeja melhorias para aproveitar o crescimento pós-crise. “Trabalhamos com uma projeção de retomada dos negócios no segundo semestre”, explica Rafael Bossolani, diretor de Relações com Investidores da Cia. Hering. A empresa está investindo em processos para tornar mais ágil a cadeia de produção – da criação do produto, passando por sua produção até chegar à loja.
O desafio se torna mais importante porque, dependendo de quando a estabilização vier, os consumidores podem estar em busca das coleções de inverno ou verão – e as lojas precisam estar prontas para isso. “O pós-pandemia será um período importante e estamos adaptando nossa proposta de valor e modelo de negócios.” Como disse o ex-CEO da General Electric, Jack Welch, “gerenciamento é lidar com o curto prazo ao mesmo tempo em que desenvolve os planos para o longo prazo”.
Pessoas motivadas e riscos gerenciados
Entrevista com Ana Karina Dias Bortoni, presidente do banco BMG
Qual é o maior desafio de gestão numa crise como essa?
São dois. O primeiro é definir um modelo de trabalho que mantenha os funcionários focados e motivados. E o outro é entender os principais riscos aos negócios e atuar de forma assertiva sobre eles.
Que impacto essas mudanças forçadas pela crise podem mudar a forma como as organizações trabalham?
As barreiras que impediam um uso maior das tecnologias digitais em alguns setores eram mais psicológicas do que reais. E, com a crise, de uma hora para outra, fomos forçados a trabalhar remotamente. As barreiras psicológicas caíram. A crise abre oportunidades para as empresas avançarem na transformação digital. A situação atual mostrou a necessidade de os times atuarem de forma multifuncional e colaborativa.
Que lição essa crise ensina sobre riscos?
Todos precisam pensar nos riscos dos negócios, não só as áreas focadas nessas atividades. A cultura de risco precisa fazer parte dessa transformação. Todos nós sentimos na pele que crises podem vir de forma inesperada, e as consequências podem ser muito graves. As discussões sobre risco devem estar fundamentadas em dados, não apenas em questões conceituais.
Apesar de todos os problemas, as organizações podem sair melhores dessa crise?
Tirando todos os aspectos ruins e trágicos, falando especificamente de negócios, acredito que sairemos melhores na forma com que trabalhamos. Talvez não precisaremos trabalhar tanto nos escritórios. E a crise reforça a importância de uma boa governança. Quem já tinha essa gestão entrou mais preparado para responder aos desafios do cenário atual. Aquelas empresas que tiveram de construir uma estrutura de governança perderam um tempo precioso.
Acesse também:
Plano de Recuperação da crise
www.deloitte.com/recuperacaocovid19