Vasta aldeia global
O mundo está mais complexo, mas, nem por isso, o cenário é desfavorável para empresas brasileiras que queiram atuar no mercado global. Mais do que nunca, as experiências apontam que o caminho da internacionalização passa por estratégias sustentáveis e inovadoras.
Abril-Junho | 2017O mundo passa por transformações importantes nos campos geopolítico, econômico, tecnológico e comportamental – e o cenário para os negócios acompanha essas variáveis. Se, por um lado, a comunicação está mais ágil e facilitada pelas ferramentas de tecnologia da informação, por outro, há incertezas e desafios no que tange ao acirramento de discursos nacionalistas, às barreiras ao comércio exterior e à polarização política. O perfil do consumidor também está mudando: mais conectado, atento ao comportamento das empresas e em busca de produtos e serviços que atendam exatamente às suas demandas.
Diante do que o poeta lusitano e navegador Luís de Camões poderia chamar de “desconcerto do mundo”, o Brasil não foge à regra. O momento atual tem exigido das corporações que atuam no País jogo de cintura para lidar com um cenário doméstico de recessão, desemprego, perda de rendimentos das famílias e incertezas políticas. Ao mesmo tempo, o Brasil continua sendo um mercado atraente para investimentos em razão de suas dimensões continentais e do grande mercado consumidor. “Os últimos dois anos têm sido difíceis para o Brasil, mas o País ainda é uma das maiores economias do mundo, com muitos ativos de valor, recursos naturais em abundância e um mercado consumidor proeminente. Todos os grandes grupos globais percebem isso, e acredito que, entre seis e nove meses, a economia brasileira verá sinais de crescimento novamente”, diz Tim Hanley, líder global da Deloitte para o setor de Bens de Consumo e Produtos Industriais.
Tim Hanley, líder global da Deloitte para o setor de Bens de Consumo e Produtos Industriais, fala sobre empresas e consumidores conectados
Nos primeiros meses de 2017, a economia brasileira mostrou alguns sinais de recuperação, ainda que tímidos. O mercado financeiro já está mais otimista em relação aos rumos da economia: o relatório Focus do Banco Central baixou a estimativa de inflação e de juros para o final de 2017, com a perspectiva de, pela primeira vez, a inflação anual ficar abaixo da meta central, o que não é atingido desde 2009. O desemprego, porém, ainda preocupa, com um contingente de cerca de 12,9 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho formal.
Navegar é preciso
Enquanto a economia não volta a crescer em todo o seu potencial, as empresas brasileiras, calejadas com as lições advindas de crises passadas, aprenderam que não se deve colocar todos os ovos na mesma cesta. Resultado: o movimento de internacionalização, da busca por novos mercados, segue crescente entre as instituições do País. O mais recente ranking sobre multinacionais brasileiras, estudo realizado pela Fundação Dom Cabral (FDC) em 2016, aponta que 78% das empresas brasileiras com operações no exterior expandiram sua atuação em 2015 com o objetivo de melhorar o desempenho. O levantamento avaliou 64 instituições – 50 multinacionais e outras 14 que operam no exterior por meio de franquias.
De acordo com as empresas entrevistadas, essa tendência de investirem mais fora do País está vinculada à necessidade de reduzir a dependência do mercado brasileiro durante o período de recessão e ao aumento da competitividade, com a conquista de novos mercados. “É quase uma reação para ganhar corpo e evitar que sejam engolidas”, diz Lívia Barakat, professora de Negócios Internacionais da FDC. Os dados são referentes ao ano de 2015 – que coincidiu com um período de forte recessão –, quando as empresas entraram em 33 países, mais do que no ano anterior, quando haviam avançado sobre 26 países.
Quando o ranking da FDC começou a ser elaborado, há dez anos, os objetivos das empresas ao buscarem o mercado global eram basicamente expandir mercados e reduzir custos. Hoje, a perspectiva mudou, explica Lívia. “As empresas brasileiras querem ganhar robustez, superar barreiras culturais e linguísticas, construir uma cadeia de fornecedores e fortalecer suas marcas. É muito mais estratégico esse movimento”, diz. A crise surge como um fator adicional de motivação para a internacionalização.
Para alguns indicadores de desempenho, as instituições estão mais satisfeitas com o mercado internacional do que com o doméstico. Porém, elas já tinham uma estratégia de internacionalização antes da crise: os maus bocados da economia brasileira só ajudaram a intensificar o movimento. Entre as empresas ouvidas, 43% planejam diversificar ainda mais o portfólio de países em que atuam – destinos como os países latino-americanos e os Estados Unidos são os preferidos nas estratégias de expansão.
Estima-se que o grau de internacionalização das organizações brasileiras, hoje de 26,1%, deve continuar crescendo nas mesmas bases médias de um ponto percentual a cada estudo. “Nunca houve redução do nível de internacionalização. Uma vez que as empresas dão esse passo, é um caminho sem volta, mesmo que a economia brasileira esteja caminhando bem”, conclui Lívia.
Investimentos sem fronteiras
Planejar os passos da expansão global e conhecer a fundo os mercados em que se pretende atuar são passos fundamentais para o sucesso na empreitada, segundo Mariana Mynarski, gerente global de Marketing da gaúcha Fitesa, considerada a empresa brasileira mais internacionalizada segundo os critérios do ranking da FDC. Com sede em Gravataí, a empresa é um dos principais fabricantes globais de não tecidos, que é o material utilizado na fabricação de produtos de higiene pessoal, como fraldas descartáveis, absorventes e itens de uso médico-hospitalar. A história de expansão internacional da empresa teve início em 2009, quando passou a produzir no México e nos Estados Unidos por meio de uma joint venture com a Fiberweb, fabricante mundial de não tecidos que já atuava nesse mercado. No ano seguinte, a joint venture, chamada Fitesa Fiberweb, anunciou o investimento em uma unidade no Peru. Em 2011, a Fitesa adquiriu a participação da Fiberweb, além de toda a operação global voltada para o mercado de descartáveis higiênicos, incluindo plantas na Suécia, Itália, Alemanha e China.
Sem medo de crise, a empresa seguiu com investimentos em novas linhas de produção no Brasil e no exterior – em 2016, foram instaladas novas máquinas no Brasil e no México e, para 2017, está prevista a expansão da capacidade de produção na Alemanha e nos Estados Unidos. “Além dos desafios tradicionalmente enfrentados, uma expansão internacional, seja por meio de aquisições de outras empresas ou de um projeto greenfield, exige também o desenvolvimento de novas formas de pensar e abordar as dificuldades do dia a dia, em virtude das diferenças culturais encontradas pelo caminho”, conta Mariana, da Fitesa. A empresa anunciou também a aquisição da Pantex International, fabricante de especialidades para o mercado de produtos de higiene pessoal com unidades na Itália, nos Estados Unidos e nos Emirados Árabes Unidos. Com a aquisição, a Fitesa contabiliza 11 fábricas em oito países (Brasil, México, Peru, Estados Unidos, Suécia, Alemanha, Itália e China).
Duane Dickson, líder global da Deloitte para o setor de Química, fala sobre a disseminação do digital em sua indústria
Além dos não tecidos para a área médica e de produtos de consumo, a Fitesa também tem apostado no segmento de especialidades químicas voltadas para o segmento do agronegócio e da indústria, além de realizar parcerias em inovação com empresas como a petroquímica Braskem para utilização de polímeros de origem renovável nos seus produtos. A diversificação do portfólio também representa uma vantagem em termos de inserção global, na avaliação de Duane Dickson, líder global da Deloitte para o setor de Química. “Em plena era das transformações digitais, muitas empresas do setor químico acabam intimidadas por não saberem como usar as tecnologias a seu favor”, diz ele, citando o estudo “Digital Transformation: Are chemical enterprises ready?”, realizado pela Deloitte, que aponta que o aumento da competição, as mudanças nas necessidades dos consumidores e no ambiente regulatório e as intrincadas equações de custo têm tornado desafiador o cenário para a indústria química global.
O Brasil não é exceção: embora possua empresas inovadoras no segmento, o cenário de recessão na economia brasileira afetou margens de lucros e participação de mercado e fez com que a indústria química do País perdesse posições, caindo do 6º para o 8º lugar em faturamento no ranking global do setor de 2016, apresentado pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), no encontro internacional do setor. Apesar do momento delicado, a indústria química nacional possui condições de recuperar-se. “O Brasil é um mercado maduro para a indústria química, especialmente em áreas como construção e aeroespacial, e deve tornar-se novamente robusto quando o País superar a crise e voltar a crescer”, diz Dickson.
Conquista sob medida
Uma das grandes empresas brasileiras do segmento de produtos de uso pessoal, a fabricante de cosméticos Natura já soma 35 anos de presença no exterior, desde que começou seu processo de internacionalização em 1982, com a entrada no mercado chileno. De lá para cá, fincou bandeiras em 21 países, com ênfase na América Latina (está presente em Argentina, Chile, Colômbia, Peru e México, e conta com um distribuidor na Bolívia), tem operações de varejo em Paris e Nova York e, em 2013, adquiriu a marca australiana de cosméticos premium Aesop, o que contribuiu para a expansão da atuação da empresa no exterior.
A América Latina foi a região escolhida para concentrar os esforços de internacionalização por dois motivos: além de altas taxas de crescimento para o mercado de cosméticos, os países latino-americanos têm tradição em venda direta, o que entusiasmou a empresa a levar seu modelo de negócios, com adequações de portfólio e no marketing. “Temos um planejamento específico para cada mercado, que tem suas particularidades. Os produtos de perfumaria e maquiagem são as categorias mais vendidas, mas também temos atuação forte em produtos para o corpo, inclusive com liderança em alguns mercados”, diz Erasmo Toledo, vice-presidente de Operações Internacionais da Natura. Na prática, as consumidoras da Colômbia e do México preferem fragrâncias mais marcantes ao escolher um perfume, enquanto as argentinas e as chilenas dão preferência a odores mais frescos e suaves. Já os produtos com ingredientes da biodiversidade brasileira, como castanha, andiroba e buriti, fazem sucesso em toda a América Latina.
Os planos para a expansão internacional da Natura são ambiciosos: até 2021, a empresa quer estar entre os quatro principais fabricantes de cosméticos, fragrâncias e produtos de higiene pessoal nos mercados em que atua. Para alcançar esse objetivo, segundo Toledo, a empresa aposta na digitalização dos canais de venda e em novas propostas de valor para as consultoras – são 543 mil representantes da marca, somando todo o mercado latino-americano. Não que o cenário não seja desafiador, pois a demanda nesses países também é afetada por fatores econômicos e políticos.
“Nossas operações na América Latina em 2016 enfrentaram um ambiente de mudanças de governo e transições de políticas econômicas. Mesmo nesse cenário, conseguimos sustentar nossa expansão e manter nosso ritmo de crescimento”, afirma Toledo. A rede Aesop também está em trajetória de expansão. “Desde que passou a integrar a Natura, em 2013, a marca australiana Aesop quadruplicou de tamanho. Nossa experiência no varejo internacional se completa com as lojas de Nova York e Paris, espaços que nos alimentam de conhecimento para a adequação do portfólio e para o desenho de um modelo escalável para uma futura expansão”, diz o vice-presidente da Natura.
Um novo consumidor global
A experiência internacional da Natura confirma uma tendência do mercado de bens de consumo que vem sendo capturada nos últimos anos: o sucesso dos produtos que têm como apelo de vendas a saúde do consumidor e a sustentabilidade do planeta. Esses atributos estão fortemente presentes na construção de cadeias de fornecedores e no marketing da Natura e são bem valorizados no mercado de cosméticos e higiene pessoal. E a indústria de alimentos e bebidas caminha exatamente na mesma direção, na avaliação de Jack Ringquist, líder global da Deloitte para o setor de Bens de Consumo. “A indústria de bens de consumo está mudando muito rapidamente. Há cinco ou seis anos, se nós falássemos que o consumidor estava buscando comida menos processada, menos embalada, com ingredientes orgânicos e livre de transgênicos, nos responderiam que isso era um nicho de mercado. No entanto, todas as pesquisas indicam que esta é uma tendência que está se enraizando no mundo todo, em diferentes faixas de consumo”, diz Ringquist.
Jack Ringquist, líder global da Deloitte para o setor de Bens de Consumo, fala sobre a evolução do consumidor
Um dos motivadores para isso é o aumento da consciência do consumidor, que, mais bem-informado e ativo nas mídias sociais, também se preocupa com a origem dos produtos que consome – um exemplo disso é a recente preocupação internacional em torno do óleo de palma, cujo cultivo na Indonésia vem causando danos ambientais extremos, como perdas de florestas nativas. Multinacionais como Nestlé e Unilever foram confrontadas por organizações não governamentais (ONGs) e grupos de consumidores sobre a origem dessa matéria-prima, com boicotes sendo organizados, e acabaram assumindo o compromisso de só comprar o ingrediente de fontes certificadas e sustentáveis.
Ringquist vislumbra grandes oportunidades para as empresas de todos os portes atuarem nesse segmento de produtos saudáveis e sustentáveis. “Com o movimento dos consumidores rumo a serem mais saudáveis, o que vemos é o dinheiro mudando de mãos, saindo das grandes empresas tradicionais para as startups”, diz. Nos Estados Unidos, isso pode ser percebido na ascensão de empresas que vendem carne de animais orgânicos e free range (criados soltos), bebidas livres de açúcar, como sucos e água de coco, e de cosméticos livres de parabenos e outros ingredientes alergênicos. “Os mercados para alimentos, cosméticos e itens de cuidados pessoais estão se tornando mais multiculturais e multiétnicos, e o Brasil é visto como um país de natureza exuberante, praias e florestas. Assim, as empresas brasileiras têm a oportunidade de explorar esse potencial, engajando e informando os consumidores sobre esses elementos”, diz Ringquist.
Para as empresas globais de produtos de consumo que estão presentes no mercado brasileiro, o momento atual pede cautela em investimentos mais abrangentes, mas tudo o que possibilitar à empresa ganhar eficiência em seus processos produtivos e aumentar suas margens de lucro é bem-vindo, na avaliação de Reynaldo Saad, sócio-líder para a indústria de Bens de Consumo e Produtos Industriais da Deloitte no Brasil. “No segmento de bens de consumo, a pressão vem de todos os lados. O consumidor pressiona o varejo por melhores preços, e o varejo repassa a pressão para a indústria, que precisa ser cada vez mais eficiente nesse cenário de margens apertadas”, diz.
A retração no mercado de trabalho também traz o imperativo de as empresas se empenharem em reter os melhores profissionais em seus quadros. Paralelamente a isso, diz Saad, a ascensão da classe média brasileira no início da década de 2010 e a maior conectividade a ferramentas de informação também delinearam um novo tipo de consumidor. “O consumidor brasileiro tornou-se muito exigente. Quer a melhor qualidade de produto, serviço ou experiência que puder pagar – mesmo com menos renda disponível. Ele vai consumir menos, mas não deixará de consumir”, avalia o sócio da Deloitte.
Experientes em driblar dificuldades econômicas e políticas, as corporações brasileiras não se furtaram ao movimento da globalização e muitas colhem os frutos desse processo, tornando-se players globais competitivos em seus setores de atuação. Agora, o momento é de olhar para as conquistas das duas últimas décadas e aprender a atuar em um cenário de concorrências mais acirradas, mas também com boas oportunidades.
A receita para se manter no jogo parece abarcar alguns padrões: buscar a inovação em seus segmentos e respeitar as tendências globais ditadas pelo consumidor cada dia mais conectado e sustentável; desbravar novos mercados, seja sozinha ou em parcerias com outros players, governo e universidades, para sobreviver em meio ao turbilhão; enfrentar as crises internas do País; e ainda assumir riscos no também instável ambiente internacional de negócios. Certamente os desafios não são poucos, mas as empresas brasileiras mostram que vão até o fim do jogo e, o mais importante, com disposição para ganhar.