Tributação na economia digital
Novos modelos de negócios digitais impõem desafios aos legisladores sobre como tributar esses serviços em âmbito global. Empresas também precisam se atentar às novas obrigações tributárias decorrentes do ambiente de convergência crescente entre os mundos físico e digital.
Setembro-Novembro | 2018Pagar tributos nunca foi uma tarefa simples, mas vem se tornando cada vez mais complexa à medida que a economia global se desenvolve e a convergência se intensifica entre setores, integrando operações que ocorriam antigamente apenas no ambiente físico e agora se conectam cada vez mais a plataformas digitais. Não é de hoje que uma empresa originária de um determinado país se instala em solo estrangeiro e, por isso, precisa ter um sistema global de recolhimento de tributos. O avanço da digitalização, porém, tornou o ambiente mais incerto: como recolher impostos de uma empresa que pode ter sede em um país e vender serviços ou produtos online sem ter presença física nele? Que tributos devem ser recolhidos? E quem deve recolher esses produtos? As autoridades da sede da empresa ou dos clientes? E mais: como deve ser o enquadramento tributário de empresas que oferecem serviços que misturam diversos setores, como a Netflix ou a Apple Store?
No Brasil, onde há dezenas de tributos, impostos e contribuições municipais, estaduais e federais, o assunto está sendo discutido pelas autoridades das três esferas. Em 2017, o Governo Federal sancionou um projeto de lei complementar que estende a cobrança de Imposto Sobre Serviços (ISS), recolhido pelos municípios, para empresas que vendem conteúdo (música e vídeo) distribuído por streaming. A decisão atingiu Netflix, Google e Spotify, entre outras. Também pagam o imposto lojas de aplicativos e de desenvolvimento de software, como o Google Play e a Apple Store. A lei estabelece alíquota mínima de 2%, o que evita “guerra fiscal” entre os municípios ao coibir isenções tributárias.
Em março, a Comissão Europeia emitiu duas diretivas sobre taxação a empresas ligadas à economia digital para resolver o seguinte problema: como o país da população que consome os serviços digitais pode receber impostos? Segundo uma das diretrizes, a ideia é que cada membro da UE possa recolher tributos de empresas com “presença significativa” no país. Isso é determinado a partir do cumprimento de critérios como faturamento anual local de € 7 milhões ou ter pelo menos 100.000 usuários. A meta é iniciar esse modelo em 2020. A segunda diretriz estipula que, antes disso, empresas que vendem dados de usuários ou oferecem serviços relacionados à publicidade digital paguem uma taxa correspondente a 3% da receita bruta. Nessa etapa, ficam fora da taxação a produção de conteúdo digital e empresas de serviços de pagamento online.
“Tributar empresas de conteúdo online é algo incipiente e ainda haverá muita discussão em torno desse tema”, diz Gustavo Rotta, sócio de Consultoria Tributária da Deloitte. Segundo o especialista, a próxima discussão será em torno da incidência de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), um imposto estadual, sobre esses mesmos produtos e serviços. “Como o ISS é municipal, os Estados querem tributar esse mercado”, diz Rotta.
Várias empresas em uma
A nova economia digital está levando ao crescimento da convergência entre setores de uma mesma empresa. Essa tendência as força a mudar a maneira como se estruturam. Um exemplo é o setor automotivo. Até pouco tempo atrás, o negócio de uma montadora de carros era, em termos simples, comprar peças de diversos fornecedores e juntá-las em uma linha de produção – ou seja, montar carros. Novos modelos de negócios estão colocando esse modelo em xeque. Para sobreviver, as montadoras estão desenvolvendo serviços de carros compartilhados (algo parecido com o Uber). E o desenvolvimento de veículos autônomos vai criar uma indústria de tecnologias e aplicativos embarcados.
Há exemplos em outros setores. Um deles é o agronegócio, em que produtoras de insumos e empresas de serviços se juntam em torno do conceito de “agricultura de precisão”, que usa tecnologias digitais como Internet das Coisas, Big Data, drones e satélites para aumentar a produtividade no campo. Nessa convergência, pode fazer sentido um novo modelo societário de estruturação dos negócios, diz Rotta. Seria algo parecido com joint ventures ou consórcios, hoje comuns em concessões de serviços públicos (como aeroportos) e construções de obras de infraestrutura. “Em um cenário de convergência de serviços e produtos dentro de uma mesma empresa, esse modelo pode ser adotado.”
Esses avanços provocam mudanças no compliance tributário. Por exemplo: se uma empresa que atuava no B2B passa a atuar no B2C, o modelo tributário muda. Isso acontece quando uma fabricante de um determinado produto que vendia para varejistas abre um canal online para atender ao consumidor final. “Sempre que as empresas mudam a forma de atuar, precisam adaptar o compliance tributário, já que o sistema estava configurado para uma realidade, que será diferente após a mudança”, diz Rotta.
No ano passado, a fabricante de computadores e notebooks Acer passou a vender para instituições na área de educação – algo que, para um leigo, pode não representar nenhuma mudança relevante. “Ao sair da venda do varejo, a classificação tributária pode mudar”, diz Roberto Cabrera, head da área de Finanças da Acer. Cabrera explica que o tratamento tributário pode variar se for escola pública ou privada e se atender a alunos com alguma necessidade especial. “Não prestar atenção nisso pode fazer com que a gente perca algum incentivo tributário, o que é algo relevante para o negócio.”
Sempre que as empresas mudam a forma de atuar, precisam adaptar o compliance tributário, já que o sistema estava configurado para uma realidade, que será diferente após a mudança., Gustavo Rotta , sócio da área de Consultoria Tributária da Deloitte.
Como acontece em cenários de disruptura, os receios surgem. Quando as mudanças ocorrem no campo da legislação tributária, a sensação de insegurança jurídica é grande. “Há um desconforto entre os contribuintes, que não sabem para quem devem recolher os impostos, ou se devem recolher os impostos”, diz Rotta. O receio aumenta porque muitas decisões são retroativas, ou seja, não passam a valer a partir da data da decisão, mas a partir de um período anterior. Dependendo do montante a ser pago, pode comprometer os resultados das empresas. “Como há 27 estados e mais e 5.000 municípios, é preciso estar atento às mudanças.”
Tributos e inovação
No cenário econômico atual, a inovação é um dos atributos mais relevantes para a competitividade entre países. Incentivos tributários têm um papel fundamental na consolidação de um país inovador. Em 2017, o Brasil apareceu na 69ª posição em um ranking de inovação com 130 países feito pela Universidade Cornell, dos Estados Unidos, pela Insead e pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI).
Para o especialista da Deloitte, os incentivos à inovação no Brasil são muito focados em produtos industriais. Um exemplo é a Lei de Informática, que retira a cobrança de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de computadores, mas não oferece nenhum incentivo para softwares ou aplicativos. “As leis brasileiras são focadas no incentivo à manufatura”, diz Rotta. “No século 21, precisamos incentivar a produção de softwares, aplicativos e serviços digitais.” Ou seja, o sistema tributário precisa atuar a favor da produção de riquezas – e estar antenado às mudanças que o mundo vem sofrendo.
“Convergência fez com que a área tributária atuasse em conjunto com outros setores das empresas”
Entrevista com Roberto Cabrera, head de Finanças da Acer
O que mudou no profissional da área tributária das empresas com a maior convergência provocada pelas novas tecnologias?
Hoje, os profissionais são mais especializados em tecnologia e estão mais atentos e atualizados. Além disso, têm a percepção de que, sem esses conhecimentos, fica difícil atuar na área. Eles também têm cultura de compartilhamento de informações maior e facilidade de atuar em conjunto com outras áreas.
E no trabalho em si?
Antigamente, o papel do profissional (da área tributária) era mais reativo – atuava para evitar problemas e mitigar riscos. Riscos são parte inerente dos negócios e atuar no gerenciamento deles ainda é importante. Mas, hoje, a atuação é mais no ‘core business’. O profissional consegue atuar de uma forma mais consultiva; está mais focado em atender à empresa, ajuda nos negócios e na geração de valor. Atua junto com equipes de outras áreas. No nosso caso, no time de produtos, de engenharia ou de vendas. Precisamos entender um novo produto, como eles funcionam, a quem são direcionados e enquadrá-los da melhor forma na estrutura tributária brasileira. Como a questão tributária impõe um grande desafio para as empresas, posicionar e classificar o produto da melhor forma são uma contribuição importante.
Pode citar um exemplo?
Até o ano passado, tablets e notebooks eram dois produtos diferentes perante o Fisco e recebiam tratamento tributário diferentes. Mas, na essência, eles têm funcionalidade parecida. Como resultado, o Fisco passou a classificar os dois produtos da mesma forma.