Nova tributação americana pode impactar empresas no Brasil
Novo texto, que entrou em vigência em 28 de dezembro de 2021, modifica os requisitos específicos para o aproveitamento do imposto pago no Brasil, o que pode ocasionar uma bitributação para as empresas norte-americanas.
Junho | 2022Empresas brasileiras que realizam operações com empresas dos Estados Unidos, assim como grupos multinacionais norte-americanos com operações no Brasil, devem ficar atentos às novas regras de tributação relacionadas ao creditamento de impostos sobre a renda pagos no exterior adotadas pelos EUA. Desde dezembro do ano passado, apenas empresas localizadas em países com legislação de tributação sobre a renda similar à norte-americana poderão fazer o aproveitamento de crédito de imposto de renda. As mudanças impostas pelas autoridades fiscais norte-americanas estão relacionadas ao aproveitamento de créditos fiscais estrangeiros, os chamados Foreign Tax Credits (FTC), e limitam as hipóteses de quando o imposto de renda estrangeiro será tratado como creditável para fins norte-americanos.
Na prática, o novo texto, que entrou em vigência em 28 de dezembro, modifica os requisitos específicos para o aproveitamento do imposto pago no Brasil, o que pode ocasionar uma bitributação para as empresas norte-americanas.
As novas limitações atingem em cheio empresas localizadas em países que não possuem tratado para evitar a bitributação com os Estados Unidos. “Como o Brasil não possui tratado vigente com os EUA, a garantia de creditamento depende do cumprimento dos novos requisitos trazidos pelas normas, onde a definição do FTC se dará a partir de uma análise de equiparação entre as regras fiscais brasileiras e as americanas”, comenta Daniel Yamamoto, sócio da frente de International Tax da Deloitte. Ele explica que quatro requerimentos devem ser observados cumulativamente sob a ótica do imposto sobre a renda, sendo que o padrão “arm’s length” é o mais relevante por se aplicar às empresas residentes fiscais no Brasil.
Neste sentido, a norma mencionada atinge tanto a compensação do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), pagos por controladas ou coligadas de empresas norte-americanas no Brasil, quanto à possibilidade de as empresas norte-americanas se creditarem do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) devido sobre alguns rendimentos.
O cerne do problema é que o Brasil não segue o padrão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para fins de legislação de preços de transferência e baseia-se em margens e fórmulas fixas, não havendo uma análise comparativa completa baseada em estudos econômicos funcionais na determinação dos lucros das transações. Esse desalinhamento entre normas brasileiras e normas internacionais tem sido discutido por Receita Federal e OCDE desde 2018, o que culminou na publicação de um relatório conjunto em 2019 relatando as principais disparidades entre as regras de preços de transferência brasileiras e as regras baseadas nos moldes da OCDE. Segundo Daniel Macedo, sócio da prática de Preços de Transferência da Deloitte, “a legislação brasileira de preços de transferência já foi motivo de debate com o governo americano em outras oportunidades que tivemos para firmar um tratado para evitar a bitributação.”
Mais recentemente, em 12 de abril de 2022, uma comitiva com membros do Ministério da Economia juntamente com membros da OCDE apresentou as principais alterações a serem propostas para a mudança da regra atual na tentativa de convergência aos padrões OCDE.
“O alinhamento das regras de preços de transferência aos moldes internacionais é uma antiga demanda do mercado brasileiro e pode ser impulsionada pela nova regra de aproveitamento de créditos tributários estrangeiros dos Estados Unidos”, comenta Daniel Macedo.
Daniel Yamamoto ressalta que a mudança nas regras de preços de transferência não necessariamente garante que o problema do creditamento do imposto brasileiro seja resolvido. Para isso, outros requisitos também precisariam ser observados.
Necessidade de mudanças mais amplas
A nova regra também não permite que as empresas norte-americanas se creditem do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) devido sobre alguns rendimentos, como serviços, royalties e juros, por exemplo. Isso ocorre porque a regra brasileira, diferentemente da americana, é definida pela residência da fonte pagadora, e os Estados Unidos só permitem o crédito se a regra brasileira considerasse a fonte de produção (da renda). “Há uma incompatibilidade de nossas regras com as regras americanas, o que por si só comprometeria o creditamento do IRRF”, diz Yamamoto. Ele explica que, no caso de serviços, como em nossas regras a imposição do imposto é definida com base na residência fiscal do remetente, e não há critério com relação à fonte onde o serviço é prestado (como estabelecido pela regra norte-americana), há uma incompatibilidade entre regras que não garantiria o creditamento do IRRF nos EUA. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado para os royalties, visto que as regras americanas se concentram na análise de titularidade e remuneração do direito/propriedade intelectual enquanto as nossas também se concentram na origem e destino (fonte pagadora e beneficiária) da remessa em si, o que também já comprometeria o creditamento.
É importante também ressaltar que uma eventual assinatura de acordo para evitar a bitributação com os EUA somente resolveria o problema de compensação do IRPJ e da CSLL caso as subsidiárias brasileiras fossem classificadas como filiais (branches) para fins americanos. “Isso, no entanto, poderia aliviar a situação do Imposto Retido na Fonte, dado que forneceria uma possibilidade de exceção dada pelo tratado que se sobreporia às exigências dos EUA”, destaca Daniel Yamamoto.
Enquanto não há uma definição sobre a situação, empresas tentam reavaliar seus modelos de negócios para evitar a bitributação. É o caso, por exemplo, do Airbnb. “Tínhamos montado um modelo de negócio baseado nas regras anteriores e até nas propostas inicialmente liberadas para consulta. No entanto, as novas regras foram bem diferentes das que prevíamos e tivemos que revisitar se seguiríamos no caminho original”, comenta Henrique Indio do Brasil, head de Tax do Airbnb para América Latina.
Ele comenta que o Brasil é um dos grandes mercados para organizações de tecnologia e, que por conta das regras tributárias do País, com destaque às regras tributárias para remessas ao exterior, boa parte das empresas estrangeiras optaram por operacionalizar o negócio localmente. “Com esse movimento, a questão do não creditamento tomou um impacto maior”, afirma. Foi necessário, explica ele, reavaliar o modelo de negócio para verificar se fazia sentido manter a estrutura de remuneração planejada ou se precisaria seguir um modelo diferente. “Diversas análises foram feitas com muita celeridade, incluindo discussões de benchmarking com outras empresas de tecnologia atuantes no mercado brasileiro para entender o que essas empresas estavam pensando em fazer, inclusive em termos de estrutura nos EUA e considerando os potenciais impactos”, conta.
A empresa optou por manter a estrutura originalmente definida. “Seguimos nessa linha porque o Brasil continua sendo um mercado-chave e com regras tributárias e regulatórias complexas que garantem que os benefícios de operar localmente ainda são superiores a eventual impacto financeiro trazido pelas regras de creditamento dos impostos brasileiros nos EUA. No nosso caso específico, ainda temos uma situação particular porque o efeito de não tomar o crédito não gera um impacto de caixa imediato para o grupo, principalmente em função de créditos acumulados de anos anteriores na entidade beneficiária dos rendimentos”, comenta o executivo ao destacar que o impacto de caixa deve ser verificado daqui um ou dois anos.
Custo Brasil
As novas regras norte-americanas terão um impacto significativo sobre o custo para as empresas manterem operações no Brasil e pode levar a uma fuga de capital para países que têm acordo para evitar a bitributação com os EUA.
Sem conseguir fazer a compensação do Imposto de Renda pago no Brasil nos Estados Unidos, o Brasil pode se tornar menos atraente para as empresas norte-americanas, o que pode impactar também novos investimentos. Historicamente, os EUA são os maiores investidores no Brasil. Estudo preparado pela CNI (definir) no último ano mostra que o IED (Investimento Estrangeiro Direto) dos Estados Unidos no Brasil foi acima de US$ 7 bilhões, crescimento de 128% em relação ao mesmo período do ano anterior. O IED total anunciado no País no ano passado foi de US$ 22 bilhões, fazendo com que os EUA representem quase 1/3 desse total.
Para Zabetta Macarini Carmignani, diretora-executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap), o principal efeito é o aumento da carga tributária e, consequentemente, do custo Brasil. “Um grupo norte-americano, com uma subsidiária brasileira sujeita ao IRPJ e a CSLL no Brasil (cuja alíquota nominal combinada atualmente é de 34% para pessoas jurídicas não financeiras), deverá oferecer esse mesmo lucro, já tributado no Brasil, à tributação nos Estados Unidos. Ou seja, a empresa controladora norte-americana não tem mais o direito de creditar o imposto de renda pessoa jurídica que foi pago no Brasil do imposto de renda devido nos EUA sobre os lucros do Brasil”. Comenta ainda Zabetta que da mesma forma, as empresas norte-americanas não poderão mais se creditar do IRRF (imposto de renda retido na fonte), que é devido sobre alguns rendimentos, por exemplo, serviços, quando a fonte de pagamento é no Brasil.
Como consequência do aumento da carga tributária, há um impacto negativo direto nos investimentos externos no Brasil, ou seja, um potencial de afastar investimentos, novos ou antigos, em razão da dupla tributação de imposto de renda. Com o aumento do custo, a competitividade das subsidiárias brasileiras em comparação com empresas de países que possuem acordos com os EUA tende a diminuir. “A carga tributária no Brasil já é alta. Com a impossibilidade de se compensar um crédito de IR, pode-se criar uma desvantagem competitiva ainda maior”, ressalta Zabetta. “Este é o pior cenário neste momento de retomada da economia, podendo acarretar perda ou redução de investimento externo”, complementa.
Alternativas possíveis
O ideal seria que o Brasil criasse uma legislação compatível com a dos Estados Unidos, o que deve levar algum tempo para acontecer. Zabetta sugere que o País inicie a adaptação demonstrando que está fazendo a convergência com as regras norte-americanas e, assim, poder pleitear sua flexibilização.
Henrique considera importante o engajamento das empresas com os governos e legisladores tanto brasileiros quanto norte-americanos. No caso do Brasil, para acelerar e implementar mudanças na legislação local e, no caso dos EUA, na tentativa de mudar as novas regras. “A indústria tem conversado com o governo norte-americano e temos tido alguma abertura, principalmente no Congresso e, mais recentemente no departamento do Tesouro americano. Por aqui, o engajamento é para tentar alcançar uma consistência com as regras internacionais. Temos visto sinais positivos do Brasil tentando chegar mais próximo às regras internacionais”, afirma.
“Temos um cenário desafiador nos próximos meses e novas soluções deverão ser pensadas para diminuir o impacto financeiro que as multinacionais americanas enfrentarão ao fazer negócios no Brasil”, diz Yamamoto, da Deloitte. Para ele, é fundamental que as empresas analisem a estrutura societária e operacional dos conglomerados multinacionais, o que incluiria revisitar origens e destinos das transações, bem como os controladores diretos e indiretos das subsidiárias brasileiras, considerando, entre outros aspectos, a malha de tratados para evitar a dupla tributação estabelecidos com o Brasil, minimizando assim o impacto das novas regras nos EUA.