A fita adesiva da estratégia digital
O verdadeiro valor da tecnologia para uma organização não está simplesmente em detê-la, mas nos novos recursos que ela proporciona – a exemplo da fita adesiva, que foi empregada de maneiras que extrapolaram o uso original projetado para ela, tornando-se útil em múltiplas situações.
Dezembro 2019 | Fevereiro 2020A Mundo Corporativo tem uma parceria com a Deloitte Insights, portal global de conteúdos da Deloitte, que apresenta estudos, artigos, vídeos e podcasts sobre as principais tendências que impactam os negócios no mundo. Neste espaço, publicamos conteúdos selecionados da Deloitte Insights, em sinergia com a realidade do mercado brasileiro.
Introdução
Adotar uma estratégia digital é saber adaptar a organização a um ambiente em transformação, para alcançar uma vantagem competitiva sustentável. A teoria das affordances (sem tradução para o português, mas que equivale a oportunidades ou possibilidades) pode ajudar as empresas a lidarem proativamente com o desenvolvimento de uma estratégia digital.
O termo “affordances” foi criado pelo psicólogo James J. Gibson para descrever as diversas formas pelas quais os seres humanos e outros animais interagem com seu ambiente. Ele não trata o animal e seu ambiente como entidades separadas, mas inextricavelmente entrelaçadas. O ambiente determina as ações disponíveis para o animal, enquanto o animal tem o poder de alterar o ambiente a partir de maneiras que mudam sua capacidade de ação. Por exemplo, uma affordance da lâmpada elétrica é a capacidade de as pessoas enxergarem ou lerem à noite, o que, por sua vez, permite que funcionários trabalhem em horários sem luz solar.
Em seu livro de 1979, “A abordagem ecológica da percepção visual”, Gibson oferece a seguinte definição: “As affordances do ambiente são compostas daquilo que o próprio meio oferece ou possibilita ao animal, seja para o bem ou para o mal. O verbo “to afford” (em português: permitir, fornecer) é encontrado no dicionário, mas o substantivo, não. Eu o inventei. Esse termo se refere ao ambiente e ao animal como nenhuma palavra existente já fez. Ele implica a complementaridade do animal e do meio ambiente.”1
Esse conceito de affordances foi posteriormente captado pelos campos da ciência da computação e sistemas de informação para descrever como as pessoas interagem com a tecnologia. Uma perspectiva de affordance sugere que as pessoas e a tecnologia da informação estão fundamentalmente interligadas. A tecnologia muda as possíveis ações das pessoas e organizações, enquanto as formas pelas quais pessoas e organizações utilizam a tecnologia modificam os efeitos da tecnologia na prática.
Mais recentemente, essa perspectiva foi estendida ao nível organizacional. As tecnologias podem mudar o ambiente organizacional em que são inseridas, permitindo um novo conjunto de affordances. À medida que as empresas aprendem e empregam novas possibilidades digitais, as organizações precisam evoluir no mesmo ritmo. Uma implicação crucial de affordance para a estratégia digital é que ela altera o foco das características da tecnologia, para como a tecnologia permite novas ações estratégicas de engajamento para as pessoas e organizações.
Sobre “A falácia da tecnologia”
O livro “A falácia da tecnologia” (2019) explora a disruptura digital pela perspectiva das pessoas e organizações — o que líderes e talentos podem fazer para capturar o valor potencial que as tecnologias digitais trazem para as empresas. Com base em quatro anos de pesquisas com mais de 16 mil entrevistados, o livro enfatiza que a disruptura digital não se resume à tecnologia, englobando também a superação de desafios organizacionais que impedem o uso eficiente da tecnologia para beneficiar as empresas. Os autores identificam três estágios de maturidade digital nas organizações — início, desenvolvimento e maturação — e afirmam que mesmo as empresas mais maduras precisam se adaptar continuamente a uma infraestrutura digital em constante evolução.
Neste artigo, os autores argumentam ainda que reconhecer as múltiplas possibilidades proporcionadas pelas novas tecnologias é fundamental para se adequar às mudanças impulsionadas digitalmente.
Fita adesiva e estratégias digitais
Em seu nível mais básico, o conceito de affordances sugere que apenas deter e implementar uma tecnologia não são suficientes para gerar vantagem comercial. Embora essa percepção pareça óbvia, é impressionante a frequência com que as organizações se comportam de forma contrária. Elas acreditam que a mera adoção da tecnologia mais recente melhorará suas perspectivas de negócios ou ainda concentram todos os seus esforços na implementação de novas ferramentas, sem dedicar tempo e recursos para realizar as mudanças organizacionais necessárias para explorar as diversas possibilidades oferecidas por essas tecnologias.
Talvez o exemplo mais paradigmático de um objeto não digital que permite múltiplas ações seja a fita adesiva. Ela foi lançada na década de 1940 como uma fita durável e flexível, que poderia ser usada em várias aplicações no contexto da guerra. A versão inicial era verde militar e seu nome original, “duck tape” (fita pato, na tradução literal), fazia alusão à sua impermeabilidade. Após a Segunda Guerra Mundial, o produto encontrou novos usos na construção, incluindo a fixação de dutos de metal. Seguiu-se a mudança para a cor cinza e o novo nome “duct tape” (fita adesiva ou fita de dutos, na tradução literal).2
Embora a primeira aplicação civil da fita adesiva fosse literalmente vedar dutos, as possibilidades desse objeto em diferentes cenários são surpreendentes. Ela pode ser usada na decoração de roupas, para construir carteiras, consertar problemas em voos espaciais, estabilizar rotores de helicópteros, fabricar recipientes para transportar água e até mesmo como um tratamento para verrugas.
Dizer que há apenas um uso “correto” para a fita adesiva é tolice. Da mesma forma, seria ingênuo dizer que existe apenas uma única maneira de aplicar certas tecnologias. As mídias sociais, por exemplo, são um equivalente digital de fita adesiva. Algumas empresas — como muitos dos principais canais de mídia — usam o Twitter para ampliar o alcance de seu conteúdo. Outras, como Delta Air Lines, JetBlue e Southwest, vêem no Twitter um canal de atendimento ao cliente altamente eficaz, permitindo que eles ofereçam suporte aos consumidores em um ambiente fluido de serviços. Outras ainda o transformaram em uma ferramenta de inteligência de negócios. Uma empresa de assistência médica com base nos EUA utiliza dados gerados por clientes no Twitter para identificar áreas de melhoria nas operações comerciais. A fabricante de automóveis Nissan usa o Twitter para ajudar a alimentar suas campanhas de marketing.3 A Cruz Vermelha Norte-Americana e o U.S. Geological Survey monitoram palavras-chave para identificar os desastres naturais mais rapidamente do que seria possível por meio dos canais tradicionais.
Como descobrir affordances ocultas
O ponto principal é simplesmente que, muitas vezes, há mais de uma maneira “certa” de usar uma tecnologia específica para apoiar as metas de negócios. O desafio das organizações é descobrir as várias formas que uma ferramenta ou plataforma pode funcionar para elas. Algumas das possíveis implicações estratégicas da tecnologia podem não ser evidentes. A literatura de affordance refere-se a estas como affordances ocultas, possibilidades de ação que podemos não reconhecer imediatamente. As ações estratégicas potenciais dessas affordances ocultas só se tornam claras quando uma organização começa a usá-las, revelando seu potencial. Uma perspectiva sugere que o caminho para a maturidade digital é um processo recursivo no qual as tecnologias e o ambiente organizacional influenciam-se mutuamente ao longo do tempo, em vez de uma progressão linear.
Affordances progressivas: ande antes de correr
Em nossa pesquisa, descobrimos que os objetivos da estratégia digital diferem de acordo com o estágio de maturidade digital. As empresas em estágio inicial se concentram principalmente em melhorar o atendimento e o envolvimento do cliente. As empresas em desenvolvimento tendem a focar a melhoria da inovação e das tomadas de decisões de negócios. No entanto, é mais provável que as empresas em maturação adicionem a transformação dos negócios a essas metas estratégicas. De fato, nos níveis mais altos de maturidade digital, todas essas metas entram em jogo. Essas descobertas levam a diversas implicações possíveis.
Primeiramente, elas significam que as empresas precisam aprender a dar os primeiros passos antes de correr no que diz respeito à tecnologia. Isto é, as empresas em estágio inicial não devem abordar a transformação de seus negócios sem antes dominar os fundamentos da melhoria do atendimento ao cliente e da eficiência. Concentrando-se nesses conceitos básicos, as empresas podem começar a utilizar as tecnologias e conduzir as mudanças organizacionais necessárias para maximizar seu impacto. Esse uso revelará, então, affordances ocultas e possibilidades de inovação, à medida que as organizações consolidam suas capacidades mais básicas. Uma vez que as empresas tiverem se apropriado de novas formas de inovação e tomadas de decisões com base em dados, elas estarão prontas para pensar em como transformar seus negócios.
Em segundo lugar, os resultados de nossas pesquisas sugerem que os níveis de maturidade que encontramos podem, na verdade, representar categorias completamente distintas, ao invés de simples melhorias incrementais. Ou seja, as empresas em maturação trabalham de maneiras profundamente diferentes das empresas em estágio inicial e em desenvolvimento. Para progredir para o próximo estágio, tornar-se melhor nas inovações digitais pode ser insuficiente; as empresas devem abordar esses esforços de outra maneira para continuar o percurso da maturidade.
Terceiro, nossos dados também apontam que a distância entre as organizações em diferentes estágios do processo tende a se agravar. As empresas mais maduras ainda estão tentando encontrar a melhor forma para alavancar essa vantagem. E o caminho para a transformação digital só começa quando as empresas atingirem o estágio de maturação.
Affordances falsas
As affordances falsas são ações que não possuem nenhuma função real. As estratégias digitais são particularmente suscetíveis a affordances falsas. Affordances digitais falsas são aquelas que fazem uma organização aparentar ser mais madura digitalmente, sem contribuir para seu funcionamento efetivo. Os gestores são frequentemente atraídos por ferramentas chamativas com funções deslumbrantes, sem considerar se elas realmente mudarão a forma como os negócios são conduzidos.
Este ponto fica bastante evidente ao compararmos duas marcas de roupas.4 Um varejista de roupas de luxo investiu em tecnologias chamativas em sua principal loja em Manhattan – como vestiários digitais, roupas com identificação por radiofrequência (RFID) e um software sofisticado que permitia que o sistema recomendasse produtos que acompanhassem os itens selecionados pelos clientes. Essa tecnologia era cara e se revelou mais uma novidade do que uma entrega de valor real aos clientes – logo foi arquivada quando mostrou que criava mais problemas do que soluções.
Como aplicar o guia da fita adesiva na estratégia digital
O que nós sabemos
Uma perspectiva de affordance sugere que o valor da tecnologia é encontrado nos novos recursos que ela oferece para um negócio, não simplesmente em suas propriedades. Assim como a fita adesiva, uma única tecnologia pode originar diversos movimentos estratégicos.
Affordances ocultas são movimentos estratégicos habilitados pela tecnologia que não são aparentes à primeira vista. Eles se revelam quando a tecnologia começa a ser utilizada.
Affordances progressivas sugerem que certas capacidades devem ser dominadas antes que os recursos subsequentes possam ser desenvolvidos. Muitas empresas passam da eficiência/experiência do cliente para melhorias em inovação/tomada de decisões, para então iniciarem a transformação dos negócios.
O que você pode fazer sobre isso?
Desenvolva processos de compartilhamento elaborando cenários diferentes para a aplicação da ferramenta tecnológica em toda a organização, sobretudo com empregos que não são esperados ou previstos. Ajude a organização a aprender com o sucesso ou fracasso dos esforços dos outros. Faça disso um componente permanente das reuniões e comunicações gerenciais.
Esse compartilhamento institucional de lições aprendidas é um elemento crucial dos pilotos de aprendizagem.
Fonte: Gerald C. Kane et al. “A falácia da Tecnologia: Como as pessoas são a verdadeira chave para a transformação digital”
(Cambridge, MA: The MIT Press, 2019).
Por outro lado, a varejista Zara – uma das empresas que mais crescem no mundo5 – é frequentemente creditada como usuária de uma infraestrutura de TI para oferecer “fast fashion”, buscando inspiração em designs populares e levando roupas ao mercado em questão de dias. A Zara gasta apenas 25% da média do setor em tecnologia, mas continua crescendo. Essa comparação deixa claro que a aquisição e a implantação de tecnologia avançada não substituem uma estratégia digital forte. A tecnologia em si é secundária à estratégia que ela proporciona.
Situações como essa se manifestam frequentemente: ter uma estratégia digital não é somente elaborar novas iniciativas para que as organizações façam negócios da mesma maneira, mas com um pouco mais de eficiência. A estratégia digital demanda uma revisão profunda da condução dos negócios à luz de todas as tendências digitais que ocorrem dentro e fora da organização. Ela envolve a identificação de novos serviços, fontes de receita e formas de interação com as pessoas.
Affordances coletivas
As organizações dificilmente alcançarão todo o potencial se cada público de interesse utilizar a tecnologia de uma forma completamente oposta. Paul M. Leonardi, professor da Universidade de Santa Bárbara, introduz o conceito de affordances coletivas para ressaltar a necessidade de as áreas de uma organização empregarem ações possibilitadas pela tecnologia de maneira consistente ou complementar a outros usuários dentro da empresa.6 Grupos que tendiam a gravitar em direção a um conjunto comum de ações com uma nova tecnologia tiveram melhor desempenho do que os grupos nos quais os indivíduos usaram a tecnologia de maneiras divergentes.7
A necessidade de affordances coletivas aumenta a importância de uma forte comunicação entre a administração e suas pessoas para aprovar uma estratégia digital. Não basta implementar inovações tecnológicas. Os profissionais precisam saber o que devem fazer com isso – e que as utilizações possíveis e mais valiosas nem sempre serão óbvias. Os profissionais também podem servir como sensores eficazes de barreiras ou implicações não intencionais de uma estratégia digital. Eles podem relatar eventuais dificuldades, permitindo que os gestores adaptem a estratégia de acordo. Os líderes não executivos podem ser socorristas valiosos para enfrentar problemas inesperados durante a execução de uma estratégia digital. Como tais, eles devem ter espaço para agir quando identificam problemas, desde que a estratégia tenha sido de fato comunicada a eles. Nossa pesquisa indica que as empresas mais maduras digitalmente impulsionam a tomada de decisões por toda a hierarquia organizacional para permitir que a empresa responda às tendências digitais mais rapidamente.
Como desvendar as affordances tecnológicas para sua organização
Em conjunto, essa perspectiva de affordances — com suas implicações ocultas, falsas e coletivas — sugere que as aplicações mais valiosas das estratégias digitais não são inerentes à tecnologia, nem aparentes desde o início. Empresas e executivos devem adotar uma mentalidade mais exploratória quando se trata de estratégias digitais — realizando pequenos experimentos para descobrir diferentes formas de usar tecnologias digitais, avaliando o valor que esses experimentos revelam e dimensionando os resultados com o maior impacto potencial no negócio. Por meio dessa abordagem experimental, as organizações podem descobrir novas formas de fazer negócios e os líderes podem começar a adaptar sua organização para prosperar em um mundo cada vez mais digital.
Notas finais
- James J. Gibson, “A abordagem ecológica da percepção visual” (Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 1979), 127.
- David M. Ewalt, “A outra melhor ferramenta de todas”, Forbes, 15 de março de 2006.
- Rebecca Kramer Rosengard, “Dicas para se envolver ao vivo: Como os fabricantes de automóveis usaram o Periscope na #NYIAS”, Let’s go Twitter, 31 de março de 2016.
- John Gallaugher, “Sistemas de informação: Um guia do gestor para aproveitar a tecnologia” Versão 6.0 (Boston: FlatWorld, 2017).
- Ibid
- Paul M. Leonardi, “Quando o uso da tecnologia permite mudanças de rede nas organizações? Um estudo comparativo do uso de recursos e affordances compartilhadas” MIS Quarterly 37, n. 3 (2013): pp. 749-75, DOI: 10.25300 / MISQ / 2013 / 37.3.04.
- Para mais informações sobre Leonardi e seu trabalho, consulte sua bio no site do Programa de Gerenciamento de Tecnologia, UC Santa Barbara.
Sobre os autores
GERALD C. (JERRY) KANE É professor de sistemas de informação e diretor do Centro de Empreendedorismo Edmund H. Shea Jr. na Carroll School of Management da Boston College. Ele também é editor convidado de Liderança Digital no MIT Sloan Management Review e editor sênior da MIS Quarterly. Ensina sobre como as empresas podem responder à disruptura digital para alunos de graduação, pós-graduação e educação executiva em todo o mundo.
ANH NGUYEN PHILLIPS é pesquisadora e autora do Centro de Pesquisa Integrada da Deloitte, onde estuda o impacto das tecnologias digitais emergentes na liderança, no talento e na cultura de uma organização. Antes de sua função de pesquisadora, Phillips passou mais de 10 anos na área de Consultoria da Deloitte, onde liderou equipes de negócios e tecnologia na implementação de soluções de gestão de pedidos e gestão de relacionamento com o cliente.
JONATHAN R. COPULSKY trabalhou no cruzamento de marca, marketing e tecnologia por mais de 35 anos. Atualmente leciona marketing na Northwestern University, onde também é membro do conselho consultivo do Spiegel Research Center da Northwestern. Copulsky atuou anteriormente como diretor e CMO da área de Consultoria da Deloitte. Seus livros anteriores incluem uma cartilha aclamada pela crítica sobre riscos de marca, “Resiliência de Marca”.
GARTH R. ANDRUS é diretor da área de Consultoria da Deloitte, liderando a oferta de DNA digital. Ele atuou no conselho da área de Consultoria da Deloitte, assim como em outras funções de liderança. Antes de seus 20 anos de consultoria, Andrus foi professor de estudos organizacionais na Vanderbilt University e na George Washington University. Ele possui um doutorado em recursos humanos e estudos organizacionais pela Universidade de Vanderbilt.