Diagnóstico preciso
O Brasil vive o desafio de encurtar a distância entre as ilhas de excelência da saúde, que investem em inovação de ponta e usufruem dos benefícios da transformação digital, e o restante do setor, boa parte do qual ainda vive na era do prontuário de papel.
Janeiro-Março | 2017As tecnologias digitais estão transformando o universo da saúde e prometem, para os próximos anos, uma revolução na forma com que os médicos se relacionam com seus pacientes, em como as informações clínicas são organizadas e até mesmo no modo com que os medicamentos são prescritos e administrados. De aplicativos para celulares que mostram a hora certa de tomar remédio, passando pelo emprego de analytics na interpretação de dados sobre pacientes, até o uso da telemedicina para atender a regiões remotas, o futuro da saúde, dentro e fora dos hospitais, passa pelos avanços digitais.
No Brasil, algumas dessas tendências começam a ser aplicadas nas chamadas “ilhas de excelência”, especialmente nos hospitais filantrópicos que investem para trazer inovação de ponta no cuidado com seus pacientes. Mas o País tem à frente um desafio ainda maior, que é o de aumentar a eficiência de toda a cadeia do setor e endereçar os desafios históricos do sistema público de saúde, em um cenário de economia estagnada e restrições no orçamento. Em torno de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é investido em saúde, mas os recursos estão longe de beneficiar de forma adequada a população, pois falta eficiência e produtividade. A saúde privada também sofreu um baque ante a crise econômica, que gerou desemprego e fez com que mais de 2 milhões de pessoas perdessem seus convênios médicos nos últimos dois anos – hoje, cerca de 49 milhões de brasileiros possuem planos de saúde.
O Governo Federal está fazendo investimentos em Tecnologia da Informação (TI) com vistas a tornar o Sistema Único de Saúde (SUS) mais eficiente. Em outubro de 2016, o Ministério da Saúde anunciou a compra de três supercomputadores, um custo de R$ 67 milhões, para informatizar e integrar os dados do SUS dentro do projeto do prontuário eletrônico. A meta é ter um sistema nacional digitalizado com informações dos brasileiros que utilizam os serviços de atenção básica – todos os atendimentos, diagnósticos, procedimentos, internações, exames e prescrições de medicamentos deverão ser registrados em um único prontuário nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), o qual poderá ser acessado de qualquer parte do País. Para que o projeto avance, além do investimento em TI, o Ministério da Saúde afirmou que vai condicionar o repasse de recursos para os municípios ao envio dos dados para o Governo Federal. Embora todas as cidades do País contem com pelo menos um ponto de internet banda larga, 76% das UBSs ainda registram o histórico dos pacientes em papel.
A tecnologia digital, além de proporcionar uma medicina individualizada e preventiva, precisa ser uma ferramenta para ampliar o acesso da população aos serviços de saúde., Enrico De Vettori, sócio-líder da Deloitte para a indústria de Life Sciences and Health Care.
A adesão dos municípios brasileiros ao prontuário eletrônico esbarra em fatores como falta de conectividade e pessoal qualificado para lidar com as novas demandas. No balanço de dezembro de 2016, 63% dos municípios brasileiros (2.060) haviam aderido ao sistema, mas 151 cidades sequer haviam se cadastrado. Entre os principais motivos para a ausência da plataforma, as cidades alegaram problemas de conectividade (74%), insuficiência de equipamentos (85%) e baixa qualificação no uso do prontuário (75%). “As tecnologias digitais podem minimizar fraudes, abusos e desperdícios no sistema público de saúde, mas é preciso ir além de um prontuário eletrônico no SUS”, afirma Enrico De Vettori, sócio-líder da Deloitte para a indústria de Life Sciences and Health Care.
Embora seja um primeiro passo importante, a unificação das informações dos pacientes em uma base de dados única em si não é uma transformação, pois há países que já fizeram isso há mais de uma década – como o Reino Unido, por exemplo. Para De Vettori, o Brasil convive com extremos na área de saúde – há ilhas de excelência, como os hospitais que trazem inovação de ponta para a área médico-hospitalar, e, ao mesmo tempo, grandes lacunas no sistema público. “Cerca de 75% da população não tem plano de saúde, tem acesso restrito a diagnósticos e chega tardiamente à rede pública”, diz.
Segundo De Vettori, o País apresenta oportunidades de negócios para investidores estrangeiros e para as próprias empresas brasileiras que resolverem apostar em serviços digitais voltados para a área de saúde. “A tecnologia digital, além de proporcionar uma medicina individualizada e preventiva, precisa ser uma ferramenta para ampliar o acesso da população aos serviços de saúde. O Brasil, no entanto, ainda tem muito a avançar para transformar o atendimento em saúde, tanto na rede pública quanto na particular.”
A resposta está nos genes
O Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, é um dos centros de alta complexidade que tem feito investimentos em inovação para a área médica. No ano passado, o hospital firmou uma parceria com a empresa portuguesa Coimbra Genomics para trazer ao Brasil a plataforma do software Elsie, que faz a análise do genoma do paciente para aconselhar o médico em relação ao diagnóstico e tratamento. Trata-se de um primeiro passo para a aplicação da medicina genômica personalizada, uma das principais tendências de aplicação de tecnologias digitais na área médica. A partir de uma amostra de sangue do paciente, é possível realizar o sequenciamento do DNA da pessoa, e o software Elsie se encarrega de traduzir as informações do código genético para o médico especialista, sem que seja necessária a presença de um geneticista para dar suporte à interpretação dos dados. A partir daí, é possível tomar decisões em relação ao melhor tratamento para cada paciente.
“Nos próximos dez anos, o genoma se tornará uma ferramenta cada vez mais utilizada para a tomada de decisão médica. A tecnologia não vai substituir exames laboratoriais e de imagem, mas será um elemento fundamental para a escolha dos tratamentos”, explica Jefferson Fernandes, superintendente de Educação e Ciências do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Segundo ele, as principais aplicações da medicina genômica personalizada têm sido nas áreas de oncologia e neurologia – a análise do DNA pode indicar a propensão de uma pessoa em desenvolver Alzheimer, por exemplo – e também há um campo promissor para cardiologia, gastroenterologia e oftalmologia.
A tecnologia ainda está em testes pelo hospital, e a expectativa é de que comece a ser oferecida comercialmente a partir de junho de 2017. Além do Brasil, a plataforma Elsie está sendo testada por hospitais de Portugal, Israel, Estônia e Finlândia e já entrou em fase comercial na Alemanha. O custo no Brasil ainda não está definido, mas Fernandes lembra que o preço do sequenciamento genético está em trajetória de queda e deve se tornar mais acessível nos próximos cinco anos. “Em 2001, o custo de fazer o mapeamento genético de um paciente não era inferior a US$ 10 milhões. Hoje é possível realizá-lo a partir de US$ 1.000”, afirma.
Telemedicina encurta distâncias
Na busca dos hospitais por tecnologias de ponta e excelência em atendimento, a telemedicina é outra possibilidade que o mundo digital trouxe para encurtar as distâncias entre médicos e pacientes. A prática da medicina a distância ainda enfrenta restrições no Brasil – não é possível, por exemplo, que um médico forneça diagnóstico e prescreva medicamentos sem a consulta presencial com o paciente –, mas já é possível fazer a análise de exames, o acompanhamento de pacientes e o intercâmbio de informações por meio da prática, além de treinamentos de equipes médicas.
Outra vantagem da telemedicina é aproximar centros de referências e hospitais públicos. No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o projeto Telemedicina para o Acidente Vascular Cerebral (AVC), que começou em 2014, oferece apoio para uma rede de hospitais públicos – são quatro da rede municipal em São Paulo e outros em Guarulhos, Goiânia e Recife. A tecnologia permite que especialistas prestem apoio a distância para pacientes da rede pública que sofreram AVC agudo. Os resultados são positivos: o índice de mortalidade caiu 20% desde que o projeto teve início.
Empresas de TI estão atentas às oportunidades que a transformação digital pode trazer para a gestão da saúde no Brasil. A Cisco, empresa norte-americana de TI, aposta no fornecimento de equipamentos e softwares para a prática da medicina remota no País. Em 2013, a empresa doou equipamentos com som e imagem em alta definição para atendimento pediátrico nos municípios de Lagarto e Tobias Barreto, no interior de Sergipe, em uma parceria com a Universidade Federal de Sergipe (UFS). O projeto conecta médicos generalistas que atendem nessas localidades a hospitais de Aracaju e São Cristóvão, onde fica o campus da universidade, gerando troca de informações, apoio em diagnóstico e um atendimento mais qualificado.
“Assim como os municípios sergipanos, o Brasil tem inúmeros lugares remotos com carência de especialistas e que podem ser beneficiados com o uso da telemedicina e outras soluções de saúde conectada”, diz José Paulo Oliveira, diretor de Setor Público da Cisco. A empresa faz parte de um grupo de trabalho, no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a fim de discutir as diretrizes para a digitalização dos serviços públicos em várias áreas, entre elas, a de saúde.
Computadores que aprendem
“Ensinar” os computadores a pensar e processar informações, auxiliando médicos no diagnóstico e tratamento, além de dar apoio aos pacientes para lidarem com doenças crônicas, como a diabetes, é o que promete a IBM com sua plataforma de computação cognitiva Watson, apresentada pela primeira vez em 2012. Ao contrário da computação programada, a cognitiva utiliza inteligência artificial para que os computadores ajam como o cérebro humano, aprendendo a fazer correlações entre os temas e aprimorando sua forma de “pensar” continuamente. A inteligência artificial é a grande aposta da indústria de aplicativos para os próximos anos: a consultoria IDC estima que a tecnologia estará incorporada à metade dos aplicativos que serão desenvolvidos até 2018.
Para a IBM, a aplicação da plataforma na área de saúde é tão estratégica que a empresa criou, em 2015, uma divisão de negócios específica, a Watson Health, com aportes de US$ 4 bilhões em empresas de tecnologia voltadas à área clínica – a Truven Health Analytics, fornecedora de dados de saúde na nuvem, e a Merge Healthcare, empresa detentora de um grande banco de imagens médicas. Globalmente, uma das principais aplicações para a plataforma Watson na saúde é voltada à oncologia: o sistema parte de um imenso banco de dados, que inclui estudos clínicos e dados científicos e históricos de pacientes para recomendar tratamentos contra diferentes tipos de câncer, bem como suas chances de cura.
“A plataforma Watson não só traz todas as possíveis respostas para uma pesquisa, mas também mostra as evidências científicas que corroboram suas respostas”, explica Eduardo Cipriani, líder da IBM Watson Health Brasil.
No Brasil, a plataforma Watson Health chegou em setembro de 2016, e um dos primeiros clientes foi o laboratório Fleury Medicina e Saúde, que vai utilizar a ferramenta Watson for Genomics para diagnósticos. Hospedada em nuvem, a tecnologia de medicina genômica deve auxiliar médicos a identificar medicamentos e ensaios clínicos relevantes com base no perfil genético dos pacientes. A TheraSkin, indústria farmacêutica brasileira especializada em dermatologia, é outra cliente da plataforma no País: está utilizando a tecnologia no desenvolvimento de medicamentos, a partir de um banco de dados de pesquisas clínicas. O acesso a bancos de dados qualificados economiza um tempo expressivo do pesquisador: um trabalho de pesquisa de artigos e evidências científicas que poderia levar até três semanas é concluído em dez minutos.
Perante os já tão conhecidos desafios do sistema de saúde do Brasil, a transformação digital apresenta-se como uma sólida aliada para que o setor ganhe em eficiência e qualidade na gestão de recursos e, primordialmente, na assistência aos pacientes.