Inovadores socioambientais
Empresas, governos e ONGs estão redefinindo seus papéis, em busca de um maior impacto na solução de desafios coletivos; nesse novo ecossistema social, perdem espaço as organizações que tentam brilhar sozinhas e entram em cena aquelas que sabem colaborar.
Junho-Agosto | 2019Em junho de 2017, secretários municipais, lojistas, quilombolas, empresários, pescadores, representantes comunitários, um padre e um pastor de Goiana, no litoral pernambucano, receberam, cada qual em seu local de trabalho, visitantes que vinham convidá-los para um encontro que discutiria os problemas e as potencialidades do município. Sugestão aceita, cerca de 20 pessoas encontraram-se, alguns dias depois, e deram início a um diálogo produtivo e relativamente novo para aquela comunidade. O pequeno grupo transformou-se em um fórum e, desde então, executou uma série de ações que estão ajudando a melhorar a qualidade de vida dos moradores da região.
O episódio ilustra uma parte da iniciativa que Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e Klabin estão promovendo na região nordestina, onde as duas empresas instalaram suas fábricas. Como alternativa a ações assistenciais, as empresas uniram-se e decidiram atuar como catalisadoras do desenvolvimento local, em um processo em que a população é protagonista. Mais do que uma ação isolada, a história em Goiana ilustra, também, um movimento crescente entre as organizações que desejam promover inovação socioambiental, buscando soluções por meio de parcerias, em uma dinâmica onde cada participante assume um papel – e onde a empresa nem sempre é a estrela do espetáculo.
Essa tendência foi bem descrita no artigo “Catalyzing Public Sector Innovation”, publicado pela Deloitte Insights. Os cinco autores, profissionais da Deloitte, examinaram mais de 100 iniciativas socioambientais inovadoras e bem-sucedidas. Concluíram que um ponto comum entre elas era a natureza ecossistêmica das soluções, ou seja, as organizações que iniciaram os projetos conseguiram construir uma rede de colaboração com um ou mais aliados, que tinham capacidades e funções complementares e, com isso, chegaram a um produto ou serviço inédito. As organizações escolheram desempenhar um desses cinco papéis: solucionadora de problemas, capacitadora, motivadora, agregadora ou integradora. Entender qual posição assumir, segundo os pesquisadores, foi um dos fatores de sucesso.
Capacitar a comunidade traz resultados
Os autores da análise deixam claro, também, que o movimento de redefinição de papéis vale tanto para governos quanto para organizações não-governamentais (ONGs) e empresas. Foi esse o caso da Klabin e da FCA, em Pernambuco.
“Vimos que teríamos um papel importante, se agíssemos como um ente externo que convida as pessoas a se envolverem nas soluções. Termos provocado aquele primeiro encontro fez as coisas acontecerem de forma muito mais dinâmica”, conta Fernando Elias, coordenador de Projetos Sociais da FCA.
Depois de colocarem em contato os representantes locais, agindo como agregadoras, as companhias passaram a atuar como capacitadoras. Levaram para Goiana a Fundación Avina, que apresentou ao grupo multissetorial o Índice de Progresso Social (IPS), usado para medir a performance social e ambiental de um território. Também apoiaram a capacitação de estudantes da Universidade Federal da Paraíba para entrevistarem a população, por meio de um questionário, e chegarem a indicadores robustos sobre o município. O círculo de discussão, que cresceu para mais de 30 pessoas e se transformou no Fórum Goiana em Ação, está usando os dados para executar medidas como o estabelecimento de um roteiro turístico pela região, a avaliação da infraestrutura das escolas públicas e a revitalização de festas populares que estavam se apagando.
“Foi um exemplo de como o diálogo pode trazer resultados extraordinários a uma comunidade. A união de forças proporcionou benefícios antes inatingíveis”, afirma Sérgio Piza, diretor de Gente, Serviços Corporativos e Relações Institucionais da Klabin.
Medir resultados faz a diferença
O uso do IPS também fez parte da estratégia escolhida pela Coca-Cola e pela Natura, em um projeto de desenvolvimento territorial na região do Médio Juruá, no Amazonas. Foi a primeira experiência no mundo de elaboração do IPS em comunidades e a partir de questionários. A aplicação da metodologia elevou a qualidade do trabalho conjunto entre empresas e moradores, afirma Marcelo Mosaner, gerente de Monitoramento e Aprendizagem da Fundación Avina e responsável pelo Índice de Progresso Social na América do Sul.
“O IPS incluiu nas avaliações uma série de dimensões que não eram levadas em conta por outros índices, como igualdade de gênero, tolerância e segurança. É uma pesquisa científica e que permite uma conversa informada com o governo. Além disso, cria um espaço de diálogo e ação que gera legitimidade”, enumera Mosaner.
Criado pela Social Progress Imperative (SPI), uma iniciativa de especialistas em políticas públicas que contou com a participação do acadêmico e consultor Michael Porter, o IPS reforça as possibilidades de conexão entre atores com perfis diversos, mas que querem trabalhar lado a lado em busca de avanços socioambientais, como explica Elias de Souza, sócio-líder da Deloitte para a indústria de Governo e Setor Público.
Temos propagado a ideia do IPS em todos os ecossistemas em que atuamos, pois é um índice que permite mensuração de resultados e traz clareza sobre oportunidades de parceria, Elias de Souza, sócio-líder da Deloitte para a indústria de Governo e Setor Público.
Vizinhos conversando
Da área ambiental, vem outro exemplo de organização que tem apostado em agregar múltiplos atores do ecossistema para resolver desafios complexos. A The Nature Conservancy (TNC), uma das maiores ONGs de conservação do mundo, coordena várias iniciativas que ela define como “pré-competitivas”, por reunirem companhias de múltiplos setores ou mesmo concorrentes do mesmo setor, em busca de soluções para riscos que afetam toda a cadeia. Um dos projetos é o Agroideal, um sistema online de inteligência territorial para os setores de soja e carne.
A ferramenta integra mapas e dados sobre a produção e a situação ambiental das regiões produtoras, para facilitar que os gestores das companhias do agronegócio planejem decisões de compra e investimento responsáveis e, com isso, atuem como influências positivas para a conservação da Amazônia e do Cerrado. O Agroideal foi desenvolvido a partir de sugestões das próprias empresas, em um processo de construção coletiva que durou mais de um ano, e já é utilizado em pelo menos três das principais empresas globais de soja que atuam no Brasil.
A ONG também lidera a Iniciativa Diálogo Empresas e Povos Indígenas, em que seus funcionários atuaram como agregadores: chamaram para se sentar à mesa representantes de associações indígenas, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), e executivos de companhias dos setores de papel e celulose, energia e mineração, entre outros.
Pela primeira vez, os dois lados puderam compartilhar suas perspectivas sobre as regiões nas quais empreendimentos como minas, hidrelétricas e estradas foram instalados em áreas próximas a Terras Indígenas. Um dos resultados da primeira fase do projeto, que existe desde 2012, foi a publicação da Proposta de Diretrizes Brasileiras de Boas Práticas Corporativas com Povos Indígenas. O livreto tem o objetivo de orientar as companhias sobre como operar de maneira respeitosa com as comunidades e incluí-las em iniciativas que gerem oportunidades sustentáveis de renda. Na segunda etapa da iniciativa, as empresas estão trabalhando para implementar as práticas que o guia compilou.
Inovação social 4.0
Além da atuação de empresas e ONGs que viram valor no trabalho conjunto, outro fator que tem impulsionado as soluções em parceria é o crescimento dos negócios de impacto, aqueles que possuem a missão explícita de gerar mudança socioambiental e, ao mesmo tempo, resultado financeiro para a organização envolvida. De modo geral, essas empresas já nascem com a postura colaborativa em seu DNA.
Na prática, elas estão ajudando a borrar ainda mais as fronteiras entre os tipos de organização, segundo Elisa Larroudé, professora da FGV-EAESP. “Vemos cada vez mais ONGs usando mecanismos de mercado e empresas buscando reinvestir parte de seu lucro, ou todo ele, em ações de impacto socioambiental”, diz Larroudé. “Mesmo a terminologia está multifacetada. Alguns dos termos mais comuns (para essas novas companhias) são “negócios de impacto”, “empresas com propósito” ou setor “dois e meio”, mas há diversas variações, justamente por ser um setor que está em evolução”, ela explica.
Foi nesse ambiente que a Deloitte lançou, em novembro de 2018, a plataforma de inovação social online Match & Matters, gratuita e aberta a empresas, negócios de impacto social e pesquisadores de todos os perfis. O objetivo da ferramenta é promover negócios e gerar impacto socioambiental, ao facilitar o encontro entre organizações que apresentam desafios e outras que têm respostas a esses problemas e precisam de alguém que invista nelas.
Para Larissa Nakano, consultora sênior da Deloitte em inovação social e sustentabilidade, além de criadora da Match & Matters, um exemplo de complementariedade que a plataforma pode estimular é entre startups, que oferecem velocidade e novas ideias, e grandes empresas, que trazem a capacidade de escala que falta aos pequenos negócios.
“Quando uma entende as dores e as soluções da outra, surge um potencial enorme para novos casos de sucesso em parcerias. Além disso, com as experiências que vamos observar, poderemos reestruturar processos nas empresas, para que fiquem mais amigáveis ao ecossistema de negócios de impacto”, comenta Larissa.
Na esteira desses novos arranjos, desenvolve-se mais um componente do ecossistema, o das finanças sociais, composto por financiadores e empresas de gestão de capital que buscam produzir impacto socioambiental com sustentabilidade financeira. Uma das organizações que se destacam nesse setor é a SITAWI. Um dos braços de atuação da SITAWI é o de Finanças Sociais, que não tem fins lucrativos e capta recursos para fazer doações, oferecer garantias e conceder empréstimos para organizações sociais e negócios de impacto. A vantagem dessa constituição é a eficiência, já que os juros dos empréstimos e 10% dos ganhos das atividades com fins lucrativos são revertidos para a manutenção do braço sem fins lucrativos.
“Só 30% do orçamento do braço sem fins lucrativos precisam ser cobertos por doações. Com um modelo híbrido, conseguimos financiar um volume três vezes maior do que se funcionássemos no modelo tradicional”, afirma Leonardo Letelier, fundador e CEO da SITAWI.
Em um cenário em que os papéis para quem quer contribuir com o progresso socioambiental se multiplicam e em que os atores do ecossistema ficam cada vez mais eficientes, a figura da empresa que tenta brilhar sozinha parece estar perdendo apelo. Com tantos potenciais parceiros, seria um desperdício preferir o monólogo ao diálogo.