A aventura da bolsa
Economia retraída e instabilidade política não são empecilhos para incluir a abertura de capital entre as estratégias de captação de recursos, especialmente diante da escassez do financiamento público; a preparação adequada, porém, é um ponto-chave
Julho-Setembro | 2017Em fevereiro de 2017, a locadora de veículos Movida fez sua Oferta Inicial de Ações (Initial Public Offering – IPO, na sigla em inglês) na B3 – Brasil, Bolsa e Balcão, novo nome da BM&FBovespa, levantando R$ 645,1 milhões com a venda de suas ações, na primeira abertura de capital do ano. Poucos dias depois, foi a vez da empresa de diagnóstico mineira Hermes Pardini fazer sua oferta, que lhe rendeu R$ 877 milhões. Em abril, a Azul Linhas Aéreas também foi à Bolsa, levantando R$ 2,02 bilhões com sua IPO.
Com as três IPOs, a primeira metade do ano foi movimentada para o mercado de capitais brasileiro, colocando fim a um período de morosidade: entre 2014 e 2016, apenas três empresas foram à Bolsa captar recursos. Ao movimento, somou-se ainda o grupo Netshoes, de e-commerce de produtos esportivos e de moda, que, também em abril, fez sua IPO, só que na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE). E, em julho, foi a vez da IPO do Carrefour na B3, que movimentou mais de R$ 5,1 bilhões – a maior operação de abertura de capital no Brasil desde 2013.
Deloitte, B3 e IBRI falam sobre as oportunidades com o mercado de capitais
Em um momento em que a economia brasileira mostra sinais leves de retomada, as empresas que hoje estão abrindo seu capital apostam nas vantagens de médio e longo prazos que estar na bolsa proporciona. Entre elas, o acesso a novos investidores, a possibilidade de financiamento de suas estratégias de expansão em um momento em que o dinheiro público está mais escasso e os ganhos de reputação e imagem.
“A decisão de realizar a IPO, em vez de assumir uma dívida convencional para financiar a expansão da empresa, veio da intenção de dividir nosso plano de negócios com investidores com uma visão de longo prazo”, explica Renato Franklin, presidente da Movida.
Criada em 2006, a empresa de locação de carros foi adquirida em 2013 pelo Grupo JSL, um dos maiores operadores logísticos da América Latina, que deu início a um ambicioso plano de expansão, visando ganhar escala e conquistar novos clientes. Na época da aquisição, a Movida tinha um faturamento anual de R$ 90 milhões, uma frota de 2.300 veículos e 26 lojas. Atenta às mudanças no padrão de mobilidade urbana que vieram com a maior oferta de serviços e aplicativos de deslocamentos, a Movida construiu uma estratégia focada em ganhar espaço com clientes do tipo pessoa física, com o apoio de plataformas tecnológicas, e abriu lojas próximas a rodoviárias e bairros de menor poder aquisitivo – sem, contudo, perder de vista a gestão de frotas corporativas. O resultado não tardou: a empresa mais do que dobrou de tamanho nos últimos três anos, fechando 2016 com um faturamento de R$ 1,9 bilhão, uma frota de 60 mil veículos e 250 lojas espalhadas pelo País.
De acordo com Franklin, a entrada na bolsa, especialmente no Novo Mercado, o segmento com padrões mais rígidos de governança, foi um passo que veio naturalmente, para que a empresa mantivesse a rota de crescimento com rentabilidade. “A Movida já carregava conceitos de uma empresa aberta, como a inovação e o fato de estarmos inseridos em um mercado em transformação, o da mobilidade urbana. A IPO foi um caminho natural”, afirma o presidente da companhia.
Com a entrada na bolsa, a Movida busca um novo ciclo de expansão, com a meta de duplicar o tamanho da empresa nos próximos cinco anos. Segundo Franklin, o mercado de locação de veículos tem espaço para crescer no Brasil, já que a frota destinada a esse fim não representa nem 1% dos carros que circulam pelas ruas de todo o País – são 350 mil carros dentro de um universo de 50 milhões de veículos. Além disso, apenas 12% da frota corporativa é terceirizada, enquanto, em países como o Reino Unido, esse índice chega a 70%.
Financiar as estratégias de expansão é um dos principais motivos que levam as empresas a abrir seu capital. Em um momento de economia mais retraída, a bolsa de valores tem sido uma das opções mais confiáveis para captar recursos, mesmo com as oscilações de mercado e da liquidez das ações. Foi o que mostrou a pesquisa “Jornada da Captação – Transformação financeira na busca de recursos”, realizada pela Deloitte, em parceria com o Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (IBRI) (veja mais detalhes sobre o estudo no box). Em sua décima edição, o levantamento foi feito entre os meses de abril e maio de 2017 e contou com a participação de 97 empresas, sendo 20 de capital aberto e 77 de capital fechado. Para 47% das empresas de capital aberto que participaram da pesquisa, a IPO foi a melhor maneira de captar recursos que estava disponível no momento em que decidiram pela abertura.
Nossa pesquisa mostra a maturidade do mercado brasileiro, que reconhece um ganho de valor para as empresas abertas. Tal valor é proveniente das adequações a regras de compliance, transparência e governança necessárias às companhias a partir do momento em que decidem abrir o capital., Fernando Augusto, sócio da área de Capital Markets da Deloitte.
“A pesquisa demonstrou que existem empresas privadas de faturamento alto e com planos de crescimento que, em algum momento, vão precisar de recursos para expansão ou manutenção do negócio. Como a capacidade de financiamento por meio dos bancos públicos está reduzida, a solução é ir para o mercado”, diz Fernando Augusto, sócio da área de Capital Markets da Deloitte.
Os altos e baixos da Bolsa e a liquidez abaixo do esperado são, de fato, fatores de preocupação para as empresas – para 54% das companhias de capital aberto consultadas pela pesquisa, a liquidez de suas ações está abaixo do que se esperava antes da IPO. Ao mesmo tempo, 46% das companhias abertas identificaram aumento no valor da empresa depois da IPO. Para Fernando Augusto, esse ganho de valor é reflexo das adequações a regras de compliance, transparência e governança necessárias às companhias listadas em bolsa. Em resumo, uma companhia listada em bolsa é vista como sólida e com maior credibilidade.
Estreia high tech
Aumentar a capitalização da companhia, ganhar flexibilidade financeira, criar um mercado público para as ações ordinárias e facilitar o acesso futuro ao mercado de capitais: foram esses os motivos para que a Netshoes abrisse seu capital, em abril deste ano. A IPO na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE) rendeu à empresa US$138,9 milhões, com os papéis sendo negociados a um preço unitário de US$18, alcançando a expectativa inicial da varejista, que era captar no mínimo US$100 milhões.
A escolha pela estreia na bolsa norte-americana foi estratégica e muito bem planejada pela companhia, hoje um dos maiores sites de e-commerce do País, com operações em outros países da América Latina, como Argentina e México. “A opção pela NYSE deu-se principalmente por uma questão de posicionamento estratégico da Netshoes no mercado de tecnologia, que é o core do nosso negócio, ao lado de grandes empresas mundiais do setor”, diz Otavio Lyra, diretor de Relações com Investidores (RI) da Netshoes. Segundo o diretor, a companhia também se pautou por melhorias no cenário macroeconômico da América Latina e pelo apetite dos investidores para novas IPOs.
Durante a IPO, a Netshoes colocou em circulação aproximadamente 25% das ações da companhia, e, à medida que o lock-up (prazo no qual os acionistas e administradores não podem vender as ações) dos acionistas anteriores à IPO acabar, Lyra acredita que a tendência será de volumes maiores de negociação. Os recursos da abertura de capital devem ajudar a Netshoes em sua meta de tornar-se um dos maiores sites de e-commerce do Brasil.
Hoje, a companhia é a maior no segmento de artigos esportivos, mas está na sexta posição no ranking do comércio eletrônico realizado pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), atrás de B2W Digital, Cnova, Magazine Luiza, Máquina de Vendas e Privalia. “Realizamos a oferta dentro da janela de tempo esperada, e capitalizamos a empresa com recursos suficientes para executar planos de médio e longo prazos”, afirma o diretor de RI.
Principais razões
Reforçar os atributos de confiabilidade de uma empresa tradicional e, ao mesmo tempo, bancar o plano de expansão: foram essas as principais motivações que levaram a Hermes Pardini a abrir seu capital em 2017. A empresa de diagnósticos, fundada em 1959 em Belo Horizonte, consolidou com a IPO o processo de profissionalização de sua gestão, que teve início em 2008, quando a família Pardini, fundadora da empresa, saiu da gestão e passou a compor o Conselho de Administração. Em 2011, a empresa mineira deu mais um passo nessa direção, com a venda de 30% de seu capital para o fundo de private equity Gávea Investimentos. Concluído o ciclo de investimento, a empresa optou por abrir o capital, com a venda das participações pelo fundo e emissão de novas ações, para dar continuidade ao plano de expansão dos negócios, que inclui a entrada em novos mercados e aquisições.
Em 2016, a Hermes Pardini comprou o Centro de Medicina Nuclear da Guanabara, no Rio de Janeiro, com sete unidades, e ampliou a presença em São Paulo. A IPO rendeu R$ 877 milhões, sendo R$690 milhões na oferta secundária e R$187 milhões na oferta primária de ações, e os recursos já estão sendo utilizados para financiar o plano de expansão, por meio da abertura de unidades e aquisição de empresas. Com um faturamento de R$971 milhões em 2016, a empresa mineira é uma das maiores do Brasil nos serviços de apoio laboratorial, o chamado lab-to-lab, no jargão do setor.
De acordo com Fernando Ramos, diretor de Relações com Investidores da Hermes Pardini, “abrir o capital é uma decisão que precisa ser muito bem pensada, ainda mais em tempos de economia instável, mas, quando se tem projetos de longo prazo, buscar recursos na IPO faz todo sentido”, diz Ramos. O custo total das duas ofertas foi de R$36 milhões, o equivalente a 4,8% da captação. Embora a prestação de serviços na área de saúde não seja tão sensível aos movimentos cíclicos da economia (exceto pelo fato de que parte da receita vem dos planos de saúde corporativos), no longo prazo, com o envelhecimento da população brasileira, a demanda por esses serviços deve crescer de forma significativa, diz o diretor de RI.
Medo da bolsa
A pesquisa Deloitte/IBRI mostrou que, para as companhias de capital fechado, o desconhecimento dos custos e da burocracia do processo de abertura do capital é um dos motivos que as afastam de colocar esse plano em prática. Segundo o estudo, 82% das empresas de capital fechado desconhecem – ou conhecem parcialmente – os procedimentos necessários para a realização de uma IPO. Um terço das organizações (32%) declara a intenção de abrir capital, mas só 6% afirmaram que pretendem fazê-lo nos próximos dois anos. A reticência ocorre mesmo em grandes empresas, já que 31% da amostra de companhias de capital fechado possuem faturamento anual superior a R$500 milhões.
Contudo, mais do que custos ou burocracia, para 79% das empresas fechadas que participaram do estudo, o fator que mais afasta as organizações do mercado de capitais é a própria conjuntura econômica atual. Na avaliação de Edmar Prado Lopes Neto, presidente do Conselho de Administração do IBRI, esse temor vem da percepção de que a bolsa de valores é um reflexo do que ocorre na economia brasileira em muitos aspectos – entre eles, a tendência de concentração em alguns setores, como o financeiro e de energia, e as altas taxas de juros, que ameaçam a liquidez de muitas empresas.
“Mas, de modo geral, as empresas brasileiras têm passado bem e mostrado liquidez, mesmo com todos os acontecimentos recentes, como a crise econômica, a perda do grau de investimento e a instabilidade política”, diz Lopes. É preciso, segundo ele, estimular tanto a entrada de novas empresas na bolsa quanto direcionar a poupança das pessoas físicas para a renda variável.
Para Fernando Augusto, da Deloitte, a pesquisa sinaliza que as empresas, estrategicamente, consideram a abertura de capital nos seus planos de negócios, mas a preparação de fato só ocorre quando a decisão está próxima. “Estamos trabalhando para que esse processo cultural comece muito antes”, afirma. É preciso alinhar as expectativas de stakeholders e investidores com a capacidade de organização financeira da empresa e estruturar práticas de controles internos, contábeis, auditoria, governança corporativa, gestão de riscos e comunicação com o mercado dentro dos critérios necessários.
Brasil continua atraente
Mesmo com a demora na retomada do crescimento da economia, o Brasil tem se mantido atraente para o investimento estrangeiro, graças à confiança dos investidores internacionais nos fundamentos do País – tais como um mercado consumidor de grandes proporções, recursos naturais abundantes, câmbio favorável e distanciamento do investidor estrangeiro dos problemas locais.
Segundo o World Investment Report 2017, relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), que trata dos fluxos internacionais de investimento direto, o Brasil manteve-se atraente em 2016, com um valor total de Investimento Estrangeiro Direto de US$ 59 bilhões naquele ano. O valor fez o País saltar da oitava para a sétima posição no ranking global, embora o montante tenha sido menor do que em 2015, quando o total alcançou US$ 64 bilhões.
“O volume de investimentos que tem entrado no Brasil continua um dos dez maiores do mundo, e isso diz respeito tanto ao aporte direto quanto nas empresas listadas na bolsa e às atividades dos fundos de private equity”, afirma Diego Barreto, membro do Conselho de Administração do IBRI. Segundo ele, essa disposição do investidor estrangeiro em aportar recursos no Brasil, somada ao volume de capital nacional em private equity, são bons indicadores de uma tendência de aquecimento do mercado de capitais no médio prazo. “A intensa atividade dos fundos de investimento, dos escritórios de advocacia e das consultorias é um demonstrativo de que muitas empresas já estão se preparando para abrir capital. Elas só esperam um momento de maior estabilidade”, conclui Barreto.