Cérebro eletrônico
Já empregados no Brasil por empresas de vários segmentos, os recursos da inteligência artificial vão alterar significativamente o panorama da produção, dos serviços e do mercado de trabalho no mundo.
Abril-Junho | 2017Desde o começo de 2016, os clientes da empresa MeCasei.com, sediada em Porto Alegre, contam com uma ajudinha extra. A startup, criada para apoiar casais a planejar suas cerimônias de casamento, passou a oferecer os préstimos de uma assistente pessoal dedicada. Meeka – é o nome da profissional – auxilia os noivos em todas as etapas do processo. Ela pesquisa fornecedores (alimentação, decoração, música, etc.) levando em conta o orçamento proposto, procura locais para realizar a festa, ajuda a acompanhar o cronograma e a agenda dos noivos, se encarrega de confirmar a presença dos convidados e faz o controle da lista de presentes. A cada passo, a assistente conversa com os clientes, faz sugestões e leva em consideração as avaliações sobre seu trabalho. Meeka só não é capaz de cumprir uma etapa: comparecer ao casamento. Isso porque… ela não existe.
Meeka é uma assistente pessoal virtual dotada de inteligência artificial (IA). Por meio do aplicativo da MeCasei.com para smartphones, ela conversa via mensagens de texto com os usuários e repassa listas de tarefas, alerta sobre datas-chave e calcula gastos. “É o primeiro programa do tipo no mundo”, garante Daniel Tamiosso, Chief Technology Officer da empresa gaúcha. A ideia de incluir recursos de IA para turbinar o atendimento surgiu quase como uma aposta. “Já conhecíamos alguns sistemas similares, mas, na época, apenas grandes empresas os empregavam. Conseguimos uma solução viável ao apresentar um escopo bem específico de utilização dos recursos”, diz Tamiosso.
Inteligência cotidiana
A inteligência artificial ocupa um lugar privilegiado no imaginário popular. O termo remete a androides futuristas e supercomputadores com pensamentos próprios. Entretanto, não é necessário recorrer à ficção científica para encontrar exemplos, cada vez mais corriqueiros, do uso da IA na vida cotidiana. A definição fundamental do conceito – máquinas capazes de perceber o ambiente que as cerca e de executar ações que maximizam sua chance de cumprir determinado objetivo – vem sendo incorporada a produtos e serviços já usados por milhões de pessoas, inclusive no Brasil.
“A IA é uma tecnologia madura e presente na vida de todos nós. Mesmo que, às vezes, não saibamos disso”, argumenta Alessandro Jannuzzi, diretor de Inovação e Novas Tecnologias da Microsoft Brasil. “Se, antes, usávamos mouse e teclado para interagir com a tecnologia, agora usamos a fala para nos comunicarmos com o celular e outros dispositivos. A IA é o que facilita essa interação e a torna mais natural”, afirma Jannuzzi, que cita o exemplo da Cortana, a assistente virtual que equipa o sistema operacional Windows. “Mais de 145 milhões de pessoas usam a Cortana, e ela já respondeu a mais de 17 bilhões de perguntas. É pura inteligência artificial cotidiana.”
Uma medida aproximada do mercado brasileiro de IA pode ser inferida a partir de dados informados por Jannuzzi. “Nos últimos seis meses, cerca de 10 mil profissionais brasileiros concluíram cursos online oferecidos pela Microsoft sobre essas tecnologias”, conta o executivo. Um total de mais de 50 mil desenvolvedores no mundo todo já trabalha efetivamente com soluções da plataforma de IA da empresa, pesquisando soluções para problemas complexos em saúde, transporte, segurança e meio ambiente. “Vale ressaltar que esses recursos também estão sendo aplicados no varejo”, diz Jannuzzi.
Segundo Jefferson Denti, diretor da área de Consultoria Empresarial da Deloitte especialista em Advanced Analytics, a IA pode ser usada em muitas dimensões. “As mais comuns são a substituição da ação humana, com a robótica, ou a ampliação da inteligência humana, por meio de Advanced Analytics e realidade aumentada.” Como parte de um processo de transformação digital, Denti pontua que estamos em uma fase de experimentação das tecnologias de IA, na qual se utiliza machine learning (algoritmos que permitem ao sistema “aprender” com seus erros e fazer previsões cada vez mais precisas, sem necessidade de programação extra), Natural Language Processing (NLP) e deep learning em projetos-piloto e pontuais para finanças, logística, atendimento ao cliente, marketing e vendas. “Em um futuro próximo, teremos os negócios rodando em plataformas totalmente digitais nas quais, por exemplo, as capacidades de inteligência artificial e big data serão nativas.”
Máquinas que aprendem
Esse também é o caso da Cuco Health, startup especializada em serviços médicos, que criou um assistente digital para acompanhar tratamentos de saúde. “O acesso a consultas, exames e terapias é difícil, caro e limitado. Cerca de 80% dos pacientes dos planos de saúde não chegam a cumprir os tratamentos prescritos integralmente”, diz Gustavo Comitre, fundador da empresa. Trabalhando com as operadoras de planos de saúde, a Cuco Health passou a oferecer uma “enfermeira virtual” capaz de resolver dúvidas básicas e fornecer esclarecimentos sobre sintomas, medicamentos e efeitos colaterais. O aplicativo conta com recursos de machine learning.
“Começamos com um banco de dados de 1.500 perguntas sobre os mais variados tratamentos. Com o machine learning, vamos expandir esse banco para 20 mil questões”, explica Comitre. A “enfermeira” é capaz de solucionar por conta própria várias das dúvidas dos pacientes – mas também consegue reconhecer quando o problema não está coberto por seu conhecimento. “Nesse caso, o próprio aplicativo conecta o usuário com um call center que conta com enfermeiras humanas, em plantão 24/7”, diz o empresário. O próximo passo da Cuco Health é buscar parcerias também com o Sistema Único de Saúde (SUS).
As aplicações de IA da Cuco Health e da MeCasei.com usam recursos do Watson, um conjunto de serviços baseados em cloud computing oferecido pela IBM. Apresentado como um “sistema de computação cognitiva que apreende em larga escala, raciocina de acordo com propósitos e interage com os humanos de forma natural”, o Watson ganhou notoriedade no Brasil em 2015, quando o Bradesco anunciou que usaria o sistema em seus processos de atendimento telefônico. “Em um primeiro momento, o interesse era limitado a grandes empresas. Porém, oferecemos soluções escaláveis para todos os tamanhos de negócios, incluindo startups como a Cuco Health e a MeCasei”, anuncia Guilherme Araújo, líder de Watson na IBM brasileira.
A capacidade de cognição do sistema, explica Araújo, torna-o aplicável em praticamente qualquer segmento de negócio. “O Watson pode ‘ler’ e interpretar uma quantidade gigante de dados em prazos muito curtos. Com isso, é capaz de fornecer insights cada vez mais precisos e interações mais ricas com o passar do tempo, mesmo em áreas que tradicionalmente não dependeriam de Tecnologia da Informação (TI), como a pesquisa médica ou a advocacia”, exemplifica o executivo da IBM.
Com um perfil bem diferente das startups citadas acima, a Algar Telecom também dinamizou seu atendimento com a ajuda do Watson. O braço do Grupo Algar dedicado a serviços de telecomunicações criou, em 2017, uma assistente pessoal chamada Ana, movida a IA, para atender (via aplicativo ou no computador) às demandas de usuários de banda larga móvel (4G). Ana é capaz de responder a cerca de 8 mil questionamentos dos consumidores, abrangendo 30 instâncias de atendimento, entre preços de pacotes, tarifas e outros temas básicos. Todo o atendimento aos clientes 4G da empresa passou a ser feito por Ana, que – de acordo com Eduardo Rabboni, diretor de Transformação Digital – soluciona cerca de 80% das dúvidas sem interferência humana.
“Para nós, foi um exemplo bem-sucedido de transformação digital barata e prática”, diz Rabboni. “O tempo de resposta é muito rápido, a diferença é mínima na comparação com o atendimento feito por uma pessoa real. E os clientes também têm essa percepção.” No caso de Ana não ser capaz de responder à demanda posta, o consumidor é transferido imediatamente para uma central com atendentes humanos. “Com os detalhes técnicos resolvidos, agora estudamos quais outras aplicações a IA pode assumir na empresa. Áreas como gestão de ativos e relacionamentos têm grande potencial.”
O futuro do emprego, redesenhado
A disseminação da inteligência artificial é um dos aspectos da transformação digital pela qual a sociedade contemporânea vem passando. Quando se fala em negócios, uma área que será diretamente impactada com a entrada da IA será a oferta de emprego. Com máquinas capazes de, efetivamente, ocupar o lugar de humanos em uma miríade de atividades, o mundo terá de repensar temas como capacitação, planejamento de carreira e atualização profissional.
“A chegada da IA será muito rápida e pode ter efeitos comparáveis aos causados pelas mudanças climáticas”, especulou o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Ricardo Abramovay. O especialista aponta que já existem dados sobre esses efeitos. “Estudo recente da Oxford Martin School verificou que 47% dos empregos nos Estados Unidos estão ameaçados de desaparecer por causa da IA. Na China, o número sobe para 65%”, afirmou Abramovay. “É um mundo que vai viver sem emprego? Viveremos um paradoxo: uma sociedade com amplo potencial produtivo, mas sem um mecanismo de distribuição.”
“Nos últimos 25 anos, a tendência dominante foi a de perda de empregos nos setores agrícola e de manufatura em decorrência dos avanços tecnológicos”, afirma Alex Cole, economista da Deloitte no Reino Unido e coautor do estudo “Tecnologia e Pessoas – A grande máquina de geração de empregos”, editado pela Deloitte em 2015. “Trabalhos que envolvem rotinas – sejam de ordem cognitiva ou manual – serão mais afetados, porque são atividades nas quais a tecnologia pode substituir as pessoas de forma mais rápida. Mas essas perdas serão compensadas e até superadas com a criação de novas vagas em segmentos como os de serviços de assistência pessoal, trabalhos no setor criativo, serviços financeiros e empresas de tecnologia da informação. Nesses casos, a tecnologia atua de forma altamente complementar à cognição humana”, pondera Cole.
A inteligência artificial substitui parte do trabalho humano atual. Em contrapartida, também fomenta o surgimento de novas indústrias e modelos de negócios, demandando novas competências dos humanos., Jefferson Denti, diretor da área de Consultoria Empresarial da Deloitte especialista em Advanced Analytics.
Na opinião de Jefferson Denti, da Deloitte, os impactos da IA no mercado brasileiro não estão sendo subestimados e existe um debate importante sobre o uso das tecnologias. “No Brasil há uma mobilização de diversos agentes em busca de maior produtividade e competitividade. Associações de indústrias, universidades, governo e empresas discutem a utilização de novas tecnologias como IA e seus possíveis impactos na sociedade, tais como futuro do trabalho, qualificação dos trabalhadores, educação e regulação, entre outros aspectos.”